segunda-feira, 29 de setembro de 2014

TIRANDO A TAMPA, SOLTANDO O VERBO

Homens chegam menos frequentemente ao atendimento astrológico do que as mulheres. Também se submetem menos do que nós a terapias, etc. Fato normal em nossa cultura.  Mas, alguns rompem essa barreira cultural e entram na roda da busca de respostas. Se expõem e dão a cara pra bater. Esta crônica apresenta aspectos do atendimento de um deles. Hélàs! Além de trazer um homem nesse trabalho de auto-observação, é um exemplo do que ocorre no momento íntimo desse encontro entre cliente e profissional, mesmo sem entrar em detalhes que não caberiam aqui.

TIRANDO A TAMPA, SOLTANDO O VERBO

Chega tímido e retraído nas maneiras. Pouco confortável no terno,  pescoço avermelhado, apertado no colarinho, pasta e guarda-chuva na mão.  Conversa com voz baixa, mal levantando os olhos.
Entra na sala. Constrangido? Acomoda a pasta e o guarda-chuva (que parece enorme nesse momento) na cadeira ao lado. Senta-se na pontinha da cadeira. Só um tempo depois se acerta com mais conforto.

Começo a leitura de seu mapa escolhendo com cuidado as palavras, procurando uma brecha para entrar no íntimo dessa sensibilidade.

Não demorou muito e ele logo começa a participar. Dialoga e pergunta sobre as questões que desfilam em meu discurso. Para minha surpresa solta a fala, descontraidamente.

E não pára mais. Percebo que a timidez deu lugar a uma confiança que se destrava na língua. Aponto para a mudança percebida. Confirma a característica desse verbo generoso. 

Com surpresa, percebo que será das consultas que ultrapassam o horário normalmente considerado regular. Às vezes, isso ocorre por necessidade dos temas abordados ou por temperamento do consulente, como era este caso. Dispunha-me, claro, a dar o tempo necessário para essa fala. Que tudo corra a contento.

E foi um rio de prosa que correu. Correu, correu. Uma enxurrada. A curiosidade aberta se escancarava nas descobertas e nas dúvidas. Se esparramava em tudo o que não ficasse claro. Enfim, confirmando minhas primeiras impressões, alongou-se o encontro. Lembrei-me da sua chegada e sorri internamente. Surpresa interessante. Estava tudo lá no seu mercúrio, aquele que nos conta da comunicação, da maneira de funcionar o pensamento. Esta lá seu jeito tímido precisando de um impulso para se expressar. 

Só que, o meu discurso acabara havia muito tempo e as dúvidas já se elaboravam por tempo alongado. E as perguntas continuavam. 

Eu não conseguia encerrar a conversa, pois lá vinha um acidente de percurso, outra dúvida. Entendi que era necessária alguma atitude da minha parte. Que fazer? Foi difícil, mas consegui dar por finalizada a entrevista.

E restabeleceu-se também a aparência tímida, guardada temporariamente em algum lugar. Aconteceu o que parecia não ter retorno. Não era o que eu esperava que acontecesse. A aparência contida de fragilidade se reconstituiu. 

Mas, apesar dessa retomada da postura inicial, não estranhei quando, à saída, de guarda-chuva e pasta na mão, dirigiu-se a mim polidamente já saindo:

- Posso fazer só mais uma perguntinha ?

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

LEITURA EM TEMPOS DE INTERNET


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Esse tema já passou pela sua cabeça, certamente. Ele faz parte das inúmeras transformações que acontecem em nossos comportamentos desde que temos sido invadidos pela tecnologia. Desde que os computadores e a internet chegaram, nossos hábitos nunca mais foram os mesmos. Mesmo que queiramos resistir, algo mudou em nossas vidas particulares ou à nossa volta.  Por exemplo, o conceito de leitura. A propósito, que tipo de leitor você é?  E como você lê o mundo?
  
LEITORES E COGNIÇÃO
 
A estudiosa em semiótica e linguagem, Lúcia Santaella (*) vem se preocupando com esse tema há muito tempo, pois ela já tinha percebido a necessidade de expandir o conceito de leitura. Somos também leitores de signos, de imagens, de sinais, de setas, números e luzes. Tudo à nossa volta significa. A instância da leitura há muito tempo, não cabe apenas à linguagem verbal.   
 
Santaella apresenta quatro tipos de leitores que foram se desenvolvendo junto às novidades de cada época, às vezes de forma lenta, outras, rápida. Talvez aquele que tem durado mais é o leitor contemplativo, que apareceu junto à tipografia de Gutenberg no século XIV que trouxe a massificação do livro, e durou até meados do século XIX. Esse leitor se entrega solitariamente à sua prática ledora, sem pressa, em relação íntima com o texto impresso.

Depois apareceu o movente que lidou com uma plataforma diferente para a apresentação de conteúdos no jornal e aprendeu a elaborar a imagem, tanto na fotografia e depois na TV. Ele se adaptou à aceleração dos centros urbanos. Ele sabe identificar a história se construindo, como no cinema e no HQ. A percepção tornou-se uma atividade instável. 
 
De certa forma, este tipo de leitor movente preparou o aparecimento do imersivo, que transita entre os nós e conexões da internet. Este tipo pratica estratégias de navegação pelas redes informacionais construindo uma leitura não mais linear e ordenada de forma estabelecida, mas de acordo com uma escolha associativa, movida por saltos e uma grande liberdade.
 
Não há exclusão de um pelo aparecimento do outro. Essas práticas convivem hoje em dia. Uma prepara a próxima, mas também se agregam em complementaridade. 
 
leitura_2_set14.jpgE há, ainda, o leitor ubíquo. Com seu material tecnológico móvel ele está em todo lugar em todos os momentos. Ele carrega o mundo. Acompanha o último estágio de desenvolvimento das tecnologias e sua atenção é irremediavelmente uma atenção parcial contínua: responde ao mesmo tempo a distintos focos sem se demorar reflexivamente em nenhum deles. 
 
O nível de atenção é apenas um sinal de outras diferenças cognitivas importantes entre esses quatro tipos de leitor. Cada prática de leitura com seu contexto e plataforma de apoio desenvolve um perfil cognitivo em que o funcionamento mental tem características diferenciadas para o bem ou para o mal. E no desenrolar do raciocínio, observa-se que cada tipo de leitor tem a partir dessas especialidades cognitivas uma determinada espécie de apreensão da realidade. A profusão de linguagens e de códigos de cada plataforma cria formas e estruturas de pensamento e outros modos
 de ver e de sentir o mundo.  
 
Há exigência de flexibilidade mental para acompanhar essas novas experiências no caldeirão de outras mudanças que desmontam todas as certezas. Não sabemos o que vem depois. Não podemos dizer o que está certo ou errado em muitas questões. Podemos supor que cheguem também novos conceitos na educação que vive o embate entre a formalidade e a informalidade próprias ao contexto da internet e da mobilidade ubíqua. Podemos descartar uma ou outra forma de aprendizagem? Como nos salvar da precariedade dos conteúdos? Formar pessoas ainda é intenção da educação? Se aprendizagem é transformação, como vivê-la nessa atmosfera de fusão entre virtual e materialidade? 

 
LEITURAS DE LETRAS E DE IMAGENS, LEITURAS DE MUNDO 
 
Saltamos de um para outro tipo de leitura. Somos múltiplos tipos de leitor. Vivemos uma época em que o mundo é sem tamanho e sem medição. Ele deverá caber em nossas expectativas e possibilidades de percepção. Cabe também que as alimentemos da melhor forma possível. E quando escrevo essa última frase, tremo porque o conceito de melhor é totalmente variável hoje em dia. Assim é. Fragmentação, relativização, globalização, ampliação, estas são as normas. Os tempos andam bicudos, diz um provérbio português.     
 
Será inevitável a representação de mundo em nossas atitudes e experiências vividas. Observar para escolher bem é a única maneira de sobrevivermos às dificuldades de hoje em dia. Cada um terá o mundo que quiser. Ou puder.  
 
Ler com mais qualidade as letras, as imagens e a virtualidade será uma alternativa? De que aspectos seu mundo é constituído? 
 
Podemos atravessar os livros, página por página. O livro é terra para ser cavada. É geografia de parágrafos, capítulos, personagens e ideias. Objeto para ser cheirado, amassado. Podemos apalpar o mundo nos livros.
 
violetas_super_6_a-_edit.jpgE também podemos nos perder em imagens no escuro do cinema e na aceleração dos centros urbanos e na explosão da propaganda. Na velocidade de tudo isso temos ido com o vento soltando os cabelos e pensamentos. Desde que chegou a imagem está aberta à invasão pelos olhos, roubando-nos a atenção e a alma. 

Com liberdade insuspeitada, sem culpa, navegamos pelos canais da internet, viajando em meio aos dendritos e conexão totalmente virtuais. Delírio. Imaginação. 
 
Ainda que nos assustemos com a ubiquidade, é caminho sem volta. Perigos em cada esquina, sem certo, nem errado. Sem lenço, sem documento? Outra rebelião. Outra nova jovem revolução. Vamos?
 
A última ilustração é intencionalmente essa com violetas, para não dizer que não falei de flores. By Geraldo Vandré.
 

(*) O conteúdo deste artigo baseia suas informações teóricas na palestra realizada na 23ª. Bienal do Livro de São Paulo no dia 29 agosto, por Lúcia Santaella: Tipos de leitores e seus perfis cognitivos. Professora e pesquisadora, ela publicou 38 livros e recebeu o prêmio Jabuti em 2002, 2009 e 2011 e os prêmios Sergio Motta em Arte e Tecnologia e Luis Beltrão, maturidade acadêmica.
 
       

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

URANO


Os estudos acerca do planeta Urano podem demandar muito tempo de uma vida, tal a riqueza de suas possibilidades. Ele é na maioria das vezes ligado ao mitológico e olímpico Ouranos, forma primordial de ser, nascido do Chaos, que gerou filhos com Gaia.

Mas também há quem o relacione ao Titã Prometeu, aquele que roubou o fogo dos deuses, tendo pago alto preço pela ousadia.

Difícil decidir sem outros detalhes de suas histórias.

Fica uma citação para incitar o pensamento. Selecionei um trecho de Liz Greene (*) em que ela inicia dizendo um aspecto dessa diferença das duas possibilidades:

"Urano sempre parece carrega uma perspectiva do potencial humano - o potencial de ser divinoo potencial de criar um universo. Aqui é o ser humano querendo ser divino. O Titan Prometeus ele mesmo não desejava ser um deus; embora ele não fosse um olímpico, ele não se apropriou dofogo solar para si mesmo, embora ele pôde facilmente ter feito isso. O que ele faz é dar aos seres humanos o desejo de ser deus, facultando-lhes a percepção para reconhecer os potenciais divinos."

Segundo ela, Urano astrológico teria mais relações de significado com Prometeu. E sua ousadia teria consequências: "O fogo de Prometeu traz muitas conseqüências não porque seja mal, mas porque a natureza humana é lerda na aprendizagem em lidar com sua responsabilidade."
Fica a sugestão de Liz Greene: muito a pensar.


(*)The Art of Stealing Fire. London: CPA, 2004, p.11 e 14 (A arte de roubar o fogo) (tradução minha)

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

O OLHO DO DESTINO, O MAPA NATAL


Todos os aspectos de nossa vida cabem num mapa astrológico. Ele é o mapa da mina. Fascinante, não?
Ele representa o céu no momento de nosso nascimento. Trata-se de um desenho mágico com o Sol e a Lua, e ainda Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e Plutão. Família completa, panteão de heróis. Tais corpos estabelecem relacionamentos e se posicionam nos doze pedaços em se divide o círculo do mapa natal, ocupados pelos signos. Por causa de ângulos matemáticos, esses corpos celestes conversam entre si.

Esse conjunto de elementos é carregado de significados que podem ser lidos para serem de valia em nossa experiência diária. Além do mapa pessoal, há outras aplicações dos recursos astrológicos, nas áreas empresarial, mundial e eletiva entre outras. E tais especialidades ainda podem variar de acordo com a formação do astrólogo.

No mapa pessoal, as indicações nos fazem ampliar a compreensão dos ciclos temporais. É uma dança marcada pelo ritmo de cada corpo celeste. Às vezes rápida como a passagem da Lua ou Vênus, outras vezes muito lenta como o passo de Netuno ou Plutão.

O mapa astrológico é um poderoso caminho para o autoconhecimento. Surpreendente e um tanto estranho é observar nossas características marcadas a partir de seus símbolos. Por meio deles, podemos entrar em contato com o funcionamento do corpo, de aspectos de nosso comportamento, modos de reagir e de pensar, nossos vícios e talentos.

Por tudo isso, o mapa natal é um convite à auto-observação e ao movimento em direção ao novo. Ele propicia questionamentos, tarefa às vezes pedregosa, mas necessária para chegar à outra margem do rio. Ele abre nova perspectiva de nossa jornada nem sempre heroica, em que podemos descobrir outros sentidos, que brotam dos escaninhos de nossas dúvidas e angústias, das veredas escuras de nossos medos e perplexidades. Ele nos oferece sentidos, alternativas e saídas. Nossa experiência de vida está lá para ser desvendada.

A função da leitura do astrólogo é decodificar tais símbolos que representam potencialidades a serem desenvolvidas, habilidades que temos e dificuldades a serem elaboradas.

Como juntar as indicações astrológicas às expectativas de quem veio procurar respostas? Como ler os significados dos símbolos e desenhos representados nas circunstâncias reais vividas para a mente, o coração e o espírito de alguém que tem uma aflição a resolver?

Uma boa leitura de mapa possibilita a todos nós fazer a passagem do concreto para o simbólico, possibilitando-nos um salto de qualidade na percepção da experiência de vida. Não estaríamos longe da verdade se disséssemos que se trata de um verdadeiro ritual de iniciação.

E quando isso acontece, a sala do consultório se ilumina.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

CRÔNICA

O carro do meu pai estava estacionado do outro lado da rua de costume. Quando abri o portão este rangeu e um pouco de sua cor saiu em minha mão. Passando pelo jardim bem cuidado e entrando na casa, o cheiro de avós já entrava pelo meu nariz e congelava meu cérebro. Velhice estava em todo o lugar, os mesmos livros empilhados do mesmo jeito, a mesma TV no mesmo canal de esportes, os mesmos porta-retratos nos mesmos lugares, tudo ali sempre fora assim desde que eu me considero gente.

Meu avô no sofá, como sempre, com seus óculos que não são trocados nunca, nos cumprimenta com um "tchau" e se dirige à cozinha onde a minha avó está postada ao lado do fogão, como sempre, vestindo seu pijama e com bobs no cabelo, usando uma meia calça por conta da dor na perna, que tem desde sempre.

A carne está na churrasqueira enquanto meu pai checa de cinco em cinco minutos, minha mãe já se sentou conversando com a minha avó fazendo caras e bocas a cada opinião sem estrutura que minha vó projeta e bate no lustre empoeirado do qual a lâmpada está queimada fazem anos e ainda não foi trocada. Está queimada desde 2008... Desde que meu tio morreu. Aquela casa congelou depois disso. Minha tia foi embora pra França levando minha prima bagunceira, o que tirou um  tanto da juventude do lugar. Mas o que mais me assusta é a reação da minha avó. Note que eu disse "é", e não "foi", pois, de certo modo, ela está arrastando esse luto. Ela cita o filho toda vez que vamos lá, e, o que soa como situação de filme de terror, ela não desmontou seu quarto. Tudo está lá. Sua cama está arrumada, seus filmes estão empilhados em sua mesa, as fotos de todos os lugares para onde ele viajou e as coisas que ele trouxe dessas viagens... Tudo isso está ali, congelado naquele único cômodo da casa em que bate sol. Vendo aquelas fotos eu sempre penso que talvez meu tio tenha vivido que meus avós.

Enfim, após fazer minha ronda pela casa, me sento na mesa, minha avó passa a mão engordurada pelo meu cabelo de um modo brusco, mas carinhoso. Minha mãe reage de modo habitual de descontentamento com a ação, mas eu compreendo e aceito o suco que me é oferecido de bom grado. Mesmo emanando minha simpatia educada, um pensamento constante passa pela minha cabeça: por favor, que eu não acabe assim.


Autora: Isabel Giannotti - estudante do ensino médio - 15 anos


Esta crônica foi produzida durante o curso "A Crônica: conhecendo e escrevendo. Cotidiano, experiência e criação" no espaço Gaia Cultural em São Paulo/SP, durante os meses de Maio e Junho de 2014.


segunda-feira, 8 de setembro de 2014

A REINVENÇÃO DA LINGUAGEM

"Há uma utopia que se repetiu ao longo do século XX que é a busca por experimentações e recursos literários nas novas narrativas literárias. Isso ocorreu tanto que, pela repetição, perdeu a força." Foi assim, que Manuel da Costa Pinto apresentou o tema da mesa redonda no dia 31 de agosto na Bienal do Livro de SP, A Reinvenção da Linguagem, com Evandro Affonso Ferrreira, João Anzzanello Carrascoza e Ricardo Lísias. 


A recolocação do tema iniciou o debate: A meta da reinvenção da linguagem ainda existe?


Evandro A Ferreira, o primeiro a falar, diz: "Eu não reinvento nada. Só copio os autores dos séculos XIX e XVIII, e no Brasil: Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Lúcio Cardoso. Fico psicografando esses autores."  Ele já teve mania de colecionar palavras. O Evandro publicitário (primeira ocupação profissional) falava com todas as pessoas ao mesmo tempo pela função dessa linguagem da propaganda. Na literatura, faz a vingança, faz tudo para não ser entendido, ele diz com humor e ironia.


O segundo participante,  Ricardo Lìsias dia que está sempre em luta com ou contra as fraquezas, a impossibilidade da linguagem. Que está sempre com o que fica de fora, sem possibilidade de ser expresso, pois, a linguagem é falha. Então, não há reinvenção. Somente embate diário.

Para João Carrascoza, a linguagem é queda em relação ao silêncio. A palavra já caiu. É limitante, somos incompletos por precisar de palavras e não conseguir comunicação pelo silencio. O mundo é visto pela névoa. Usamos palavras para eliminar a névoa. 
 
Depois dessa mesa redonda, reapareceu para mim uma das razões para a existência da literatura: os autores representam o mundo para nós leitores, embora eles pensem que fazem isso por e para si mesmos.
É natural que nós, leitores, já tenhamos nos daparado com questões de linguagem. Ela escapa de nossas mãos, os sentidos escorrem pelos nossos dedos, ficamos com a sensação de vazio.     

Então, eles falam a vida por nós, dão presença através de seus personagens, sabem como sublimar com a linguagem.

Eles lutam com as palavras para que nós possamos usufruir de suas histórias e da vida que respira através delas. 

Reinvenção da linguagem existe a cada obra, cada capítulo de romance, a cada página, parágrafo, linha em que as palavras se derramam para verter sentido.

Gracias a los escritores!   

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

ZEZÃO, GRAFITEIRO E ARTISTA

“Sou urbanóide, skate e grafite.”
Zezão

Temos notícias de grafites desde o Império Romano. Estiveram presentes nos movimentos de 1968, pelos muros de Paris. Atualmente, no Brasil, os grafiteiros têm chegado às galerias de arte. Zezão fez uma exposição na Galeria Zipper em São Paulo no primeiro semestre deste ano. Fui entrevistá-lo em seu ateliê Overground. Saiba um pouco de sua história e do mundo do grafite.

flops ou arabescos?



Os grafites, pelos tempos afora, sempre tiveram a função essencial de dar voz a quem não pode se fazer escutar por outros meios. É a palavra inscrita espontânea e intencionalmente para gritar algo que o silêncio e a ausência não podem tolerar, em local que não foi pensado para essa finalidade.

Em inglês o grafite e a pichação são enunciados pela mesma palavra. Felizmente em português temos duas porque são dois eventos urbanos diferentes, mesmo que nem sempre possamos dizer quais são os limites entre eles. Os dois são interferências feitas em geral por jovens no espaço coletivo; são modos de ocupação da cidade. Ambos têm algo de inadequado ou mesmo de transgressão. Hoje em dia, o grafite ganha o nome de street art ou arte urbana. Os grafiteiros Osgêmeos, Kobra e Zezão percorreram essa trilha: começaram nas ruas e conquistaram os espaços da arte.

Zezão é da terceira geração de grafiteiros dos anos 90 em São Paulo, com influência do hip hop e do underground americano. O filme Traços de uma vida a respeito de Jean Michel Basquiat , final dos anos 70 em Nova York, ampliou sua maneira de pensar.

Depois de deixar o skate, começou a desenhar o próprio nome, que é a maneira clássica de todos que iniciam o caminho do grafite.

Em 1995 foi para a rua. Os primeiros lugares visitados e abandonados foram a fábrica Klabin e o moinho Matarazzo.  Em 2000, teve a notícia de um buraco que dava para uma galeria subterrânea. Entrou para ver o que tinha. Ele confessa que daí em diante virou rato. E vieram também a linha do trem, as tampas de bueiro, os córregos, os becos por onde se distribuíram seus arabescos delicados e elegantes em dois tons de azul.  Ops, arabescos não. São flops. Desenvolveu assim uma de suas mais importantes marcas, sua assinatura.

Como a permissão para a pintura nem sempre acontece, em geral, as intervenções carregam consigo algo de proibido. Talvez por essa atitude transgressora, tenha havido época de muita repressão pela sociedade e pela polícia. Até que a repressão diminuiu e, após 2003, começa a haver o reconhecimento desse trabalho. Em 2006, as galerias de arte abrem espaço.

Zezão pôde crescer junto a essa abertura e aceitação do grafite. Depois, sentiu necessidade de experimentar outros suportes. Experimentou a foto, o pincel. Aproveitou os objetos coletados na rua tais como pedaços de porta, madeiras velhas e outros em colagens.

Em 2007, veio o primeiro convite para ir a Nova York. Daí em diante não parou mais de viajar, com exposições em galerias, museus ou murais pelo mundo afora. Proximamente, mais um mês em São Francisco, onde ficou em maio deste ano pintando muros, fachada da galeria, lancha e locais abandonados. Experimenta a cada viagem uma larga troca entre os grafiteiros de cada lugar, que se agregam para o trabalho em conjunto. O grafite é a linguagem de tribos urbanas. Conhece todos os subterrâneos das cidades por onde passa. Tem afinidade com os escondidos, em meio a angústias e buscas.  Hoje em dia também participa de projetos sociais, revitalização de locais e de palestras.  E completará vinte anos de carreira em 2015. Muito a celebrar. (*)

Mas, nos perguntamos: grafite é arte? O que é arte?

Efemeridade e permanência

Zezão diz que resposta fácil à pergunta “o que é arte?” será necessariamente precária. Segundo ele, fazer grafite  não é fácil . É sorte. É um mundo sem glamour.

Talvez mais do que o produto pronto, para ele vale a experiência com a corda do rapel, com o risco implícito a cada situação.  Gosta de preparar-se para sair, de juntar o material, as tintas, de montar a mochila. Em contato com a rua e seus submundos, se deparando com histórias construídas na contramão com suas personagens bizarras pelo meio. Cada trabalho é o retrato de um momento de sua vida. Assim intenso, com depressão, dor e descoberta de sentido. 

Seja nas catacumbas de Paris, seja nas galerias do Tietê, nos canais de esgoto ele anda sempre com o pé nas águas. O desejo é fazer desenhos, deixando sua marca, aquela que foi treinada na fase de experimentação de traços e de cores. É da arte a intenção de identidade. É necessidade, uma busca de algo único e singular.

Nessa trajetória por uma expressão, buscou combinações de cores e chegou ao azul que foi se espalhando pelos cantos e becos. E a questão das águas aconteceu para  Zezão, porque ela estava lá quando ele chegou. Acabou sendo assunto de sua arte. Não foi intencional, mas era o esgoto e o rio Tietê. Era o local da sua arte.

Por que o azul? É a cor da espiritualidade, o céu, a paz, o mar e a água. O trabalho provocou uma aproximação com a água em sua limpeza e/ou sujidade.

Não há dúvida de que grafite é arte. Uma arte diferente daquela a que estamos acostumados, pois ela irrompe em um contexto estranho e radical. Mas apresenta os aspectos da produção e de um ritual do fazer artístico, integrado á vida do artista. Como ele diz, grafite envolve postura e atitude.

Outra diferença nessa arte é sua efemeridade. Grafiteiro em princípio não é artista de ateliê, segundo ele. E os grafites somem com as águas que lavam e com o tempo que gasta.

Que bom Zezão, que você colabora para que a cidade seja mais humana.  Você faz arte limpa de intenções. E a cidade fica viva e grita sua dor a partir do contraste que você aponta com seu traço e assinatura. Tem razão, Zezão, não dá para falar de arte. Você faz arte, cada vez que uma necessidade imensa de representação o impele para a rua. Você manifesta assim aquilo que de melhor a natureza humana tem. Você a salva. A arte é isso, salvação da natureza humana de suas fragilidades e pecados. Pela sensibilização e pelo gesto que produz o belo.

“Não sei me denominar”, ele diz. Nem precisa, Zezão. Está tudo claro, claro como os seus desenhos a pulsar nos lugares em que estão colocados. Vibram acesos tais faróis de luz muito viva, mesmo que sejam apagados pelas águas que sobem ou pelo tempo que dilui. O desenho aparecerá em outro lugar. Ou no mesmo lugar, efêmero e renitente, como ecos, insistindo e brigando pelo espaço e presença.

Grafites são feitos para o uso da cidade, para o usufruto de todos. Generosamente, você vai colorindo de azul celeste e de colorido os feios da urbe. Obrigada, Zezão. A temporalidade do gesto permanece ao lado da efemeridade do traço. É assim a vida. É assim a arte do grafite.


(*) Para mais informações e imagens visite o youtube e o site   http://www.zezaoarts.com.br/zezao.asp

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

ALGUMAS IDEIAS DE MARTHA MEDEIROS


Antes de mais nada, preciso confessar que nunca fui leitora de seus textos, a não ser quando eu os recebia enviados a mim por email. Sempre gostei desses pedaços de sua obra.

Mas Martha Medeiros escreveu bem mais do que eu imaginava: cerca de vinte e três livros publicados e mais de um milhão de livros vendidos. E tem uma coluna no jornal O Globo. Ou seja, é uma escritora de sucesso.

Mas, não é por esses dados incríveis em um país em que se lê tão pouco, que me detenho nela. É pela pessoa que conheci na entrevista do programa Roda Viva da TV Cultura (01/09).  

Simpática, elegante e sempre delicada respondeu a muitas perguntas pertinentes a sua obra e a assuntos gerais. Simples e bastante consciente dos efeitos de suas palavras, não omitiu opiniões mais polêmicas. Por exemplo, ela é a favor do aborto e faz ressalvas em relação ao sentimentalismo do brasileiro que, segundo ela, faz que se perca o foco. Critica nossa passionalidade e se defende dizendo que não precisa perder o senso crítico por ter laços afetivos pelo Brasil. Confessa que fora daqui se sente menos estrangeira. 

Além desses, outros assuntos apareceram no programa. Sua relação com as questões da maternidade, a preferência por não se engajar ideologicamente, observando as coisas por uma perspectiva maior. Ela pontuou a importância da arte, da educação e da cultura para preencher o “vazio existencial” que ela observa.  Há o que ela denominou “contingências da vida” que poderia ser interpretado como uma visão prática da realidade.

Houve muito mais nessa entrevista. Mas, de tudo sobrou uma visão lúcida da vida. Entabulei, desde então, uma conversa íntima com Martha. Fiquei próxima dela. Sua pessoa apareceu fora de um limbo – uma espécie de espaço inalcançável - em que ficam as pessoas que conheço pela mídia, mas de quem não tenho muitas informações. Fico tentando adivinhar o que ela escreve em seus textos, muitas vezes qualificados como de autoajuda. Não importam tais adjetivos. Sua pessoa ganhou corpo e consistência para mim. E consistência é palavra que ela mesma cita na entrevista. Que sentidos terá essa palavra para ela?

Acompanhe em seguida, em uma espécie de paráfrase, algumas de suas ideias que mais chamaram minha atenção.


MATERNIDADE E SEPARAÇÕES

Ser mãe é fantástico, mas é mais uma aventura da vida. A mulher pode colocar seu afeto em muitos locais. A questão da maternidade em geral leva em conta apenas alguns aspectos e não o seu lado encrenca.

As questões da educação são importantes e é preciso parar de educar as crianças para o eterno, para o sempre. As separações existem e são atos de honestidade. Parece trágico porque parece ser fruto de um fracasso. O fim do casamento não é um fracasso, mas uma contingência. A família continua a existir.


a LITERATURA e o processo criativo

Escrevo para mim. É autoanálise, é para narrar as angústias e sofrimentos, para encontrar respostas, para desestressar.

A publicidade me deu o treino constante com objetividade e humor, foi uma escola da síntese e da sedução. Ao deixar a publicidade, troquei de produto. A sedução literária não é consciente, mas é uma herança da publicidade. Combato a sacralidade da literatura.

Não me organizo para escrever. Tenho um espaço na sala e sou interrompida por questões domésticas e da família. Mas, sou desorganizada somente por fora, por dentro não. Vejo um filme, uma frase e daí o texto surge. Escrevo, reescrevo. Deixo o texto dormir e no dia seguinte ele é acabado.

Não faço crônica, faço uma coluna de opinião. Crônica literária quem faz é Rubem Braga que sabe escrever a respeito do vôo de uma borboleta.

Talvez o que encante os leitores talvez seja a simplicidade. Nos meus textos não há uma persona. Domingos de Oliveira disse: Nada é mais revolucionário do que a simplicidade.


ARTE E EDUCAÇÃO

O caso do menino Bernardo não traz a violência, mas a ignorância. Há um vazio existencial que a arte pode preencher. Cultura é fundamental para resolver a ignorância. Cultura ensina a pensar, abre uma visão maior da vida. 

Fui educada pelas músicas que ouvi, pelos filmes a que assisti e não somente pelas palavras que me disseram: faça ou não faça isso ou aquilo.

Um texto triste de literatura não me deixa triste, me deixa feliz. Extrai algo de bom de dentro de mim. A tristeza é mais consistente.


Confira entrevista na íntegra: https://www.youtube.com/watch?v=9TiYPItx408