quinta-feira, 26 de junho de 2014

O PESO DO TEMPO

O Theatro Municipal é uma festa. Na construção, os detalhes de um século dezenove ainda presente, tudo perfeito para o que viria em seguida e era o mote do programa: a ópera Carmen. Nela o francês Bizet retrata a história de amor de uma mulher livre e sem compromissos e de como ela pagou seus desejos com a vida. O importante naquela noite era perceber o que esta montagem traria de original. Mas outras surpresas me esperavam.

Quando cheguei ao meu lugar, ela já estava sentada na poltrona ao lado. Sorriu. O cabelo curto e branco mostrava um cuidado especial. Atrás dos óculos, olhos vivos. Vestia um conjunto bege claro e uma blusa branca com detalhes de renda. Pediu desculpas se ocupasse o braço da cadeira. Era distraída e poderia invadir o espaço. Rimos quando lhe disse que esse espaço já era antecipadamente só dela.

Outras aberturas se seguiram. Ela estava um tanto inquieta. Puxou conversa. Fazia sessenta e quatro anos que tinha esperado para assistir a Cármen ao vivo. Como?, perguntei. E o relato que se seguiu me mostrou um pedaço de sua vida.

Aos catorze anos, ouvira pela primeira vez essa obra, junto à família de origem italiana que já contava com repertório operístico. Desde então, não conseguiu assisti-la ao vivo. Na memória, restaram aquela primeira audiência e muitas outras em forma de DVD, pelo cinema e TV.

Depois, ao longo dos quatro atos da história de paixão e tragédia, pude ouvir outros comentários. Sabendo de cor as sequências, às vezes ela me punha a par da ária especial a ser cantada em seguida assim como me dizia antecipadamente versos significativos em francês.  Havia brilho e alegria em sua voz.

Esse conhecimento anterior não diminuíra o prazer de ouvir a mesma música outra vez. Tratava-se da arte maior que não se esgota no tempo da fruição. Fui testemunha desse momento em que houve a realização de um sonho de adolescência.  Havia outra questão: a permanência e o tempo de espera que justificavam a ansiedade passível de ser observada.

Percebi então, que não me importavam mais as luminárias de bronze ou as pinturas laterais com belas formas coloridas a voar. Nos intervalos, eu passava meu olhar pelo burburinho dos grupos, pelas pessoas andando nos corredores. O desejo de um café desaparecera.   

Percorria os espaços sem ver, pois estava impregnada pelo peso do tempo que mantivera o sonho aceso. Seis décadas se alinhando pacientemente até chegar o momento presente.

Tinha sido envolvida pela emoção daquela senhora de quase oitenta anos. Ela me contagiara. Eu buscava na natureza humana os possíveis detalhes desconhecidos de sua vida. Os empecilhos e as frustrações pelo desejo protelado em sua realização. Quantas vezes protelado? Talvez ela não pudesse suportar sozinha tanta emoção e tinha encontrado alguém para compartilhar. Em parte, eu comportava esse momento.  Estava incluída nessa realização, parte final de um processo, de uma experiência de vida.

Foi assim que assisti a ópera como se fosse minha primeira vez. Desvendei suas árias e movimentações a partir de olhos que tinham sustentado sessenta anos de espera, sem estar cansados. Sem levar em conta todas as possíveis pedras no meio do caminho. Uma adolescente guardada por muito tempo acordava nesse momento.

Seu filho a esperava na porta do teatro. Nos olhos curiosos parecia querer adivinhar o que teria acontecido ao me ver junto dela. Tínhamos sorrisos nos lábios. Nesse momento, ela me agradeceu.


Ela talvez não pudesse entender que era eu a pessoa que tinha muito a agradecer.