terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

A TAREFA E A DÁDIVA DE SATURNO



Sabe aquela sensação de pressão típica de um trânsito de Saturno? Há um bom exemplo dela no filme DOIS DIAS E UMA NOITE, dos irmãos Dardenne, com Marion Cotillard (indicada ao Oscar de melhor atriz 2014) no papel principal. Ela vive uma personagem à beira de perder o emprego em meio a uma situação que contrapõe  individualismo e solidariedade.
  
COMO UM TRÂNSITO DE SATURNO 

O filme começa descrevendo uma personagem deprimida e em crise profissional.  Pensei comigo: acho que vai ser difícil assistir a esse filme até o fim.

A personagem principal está recém-saída de um tratamento e ao voltar ao trabalho, vê-se na situação crítica de ser demitida ou ver seus dezesseis colegas de turma na empresa perderem um bônus de mil euros.

Depois de uma votação em que houve tentativa mudança de votos mediante argumentos mentirosos, ela consegue uma segunda chance. Tem então um final de semana (dois dias e uma noite) para mudar o voto dos colegas a seu favor.

Começa a tarefa saturnina de conseguir o voto dos colegas a seu favor. Mas como pedir para eles abrirem mão de uma quantia tão interessante em favor da manutenção de seu lugar?

Ela não tem o entusiasmo nem a energia física suficiente para encarar todo tipo de respostas possíveis. Mas, conta com a ajuda do marido que a estimula a conseguir o que quer.

E segue com enormes dificuldades. Experimenta quedas de humor frequentes, toma pílulas aos montes, chora, recebe respostas negativas, algumas positivas e outras duvidosas.

As situações são diversas e isso faz a graça da história. Cada um dos oito votos conquistados apresenta algo de novo e inesperado.  Ao longo desse tempo de luta contra a própria desesperança, ela vai arrebanhando uma visão maior de sua tarefa. Aos poucos ganha parceiros, energia para uma sessão de rock no carro e um sorriso que só aparece quando ela já está no final do seu prazo de um final de semana.

O final surpreende. Ela perde. Um empate dos votos de seus colegas a deixa sem seu emprego. Aceita o resultado da votação e se dispõe a deixar o local de trabalho. É tarefa cumprida com sensação de calma. Mas ainda tem uma situação importante a viver.

Aceitar ou não aceitar a proposta (indecente) do responsável por sua contratação ou demissão? Não aceita. Mas, ela sai da empresa sorrindo e com passos firmes. Por que motivo?  O que ocorreu?

Foi uma decisão dela, para desempatar a votação de seus colegas. Tal atitude finalizou seu trabalho saturnino com chave de ouro: uma decisão pessoal com energia e recursos conquistados ao longo dos dois dias e uma noite.

A DÁDIVA DE SATURNO

Esse filme é um exemplo do trânsito de Saturno. Uma tarefa difícil, lenta e pesada que pode, às vezes, nos deixar exaustos.  Mas ao final, se estivermos com tudo nos eixos da moral e da justiça, haverá uma dádiva.

A personagem não titubeia quando abre mão daquilo por que tinha lutado o tempo todo. Ela sabe que optou pelo que devia e isso a faz forte. Abre em seu rosto um sorriso e competência em seu corpo, antes frágil.

Ela estabeleceu novo vínculo com o marido, baseado na confiança em si mesma e nas palavras que ele lhe diz. Ganhou amigos. Percebeu melhor as relações com o grupo.

"O futuro está à frente com muitos problemas e ela está madura para dar conta deles.A força veio de uma percepção que as coisas estão colocadas por ela como devem ser: em acordo com as regras (Saturno em Capricórnio) e em ordem com equilíbrio e justiça (Saturno em exaltação em Libra)."

A personagem se transforma ao longo da narrativa. Vai angariando forças e percebendo sentido na sua busca. Ganhar o posto e a votação não é mais importante do que a noção de força pessoal que tem dentro de si. Ela perdeu seu emprego, mas ganhou em outros níveis de experiência. 

Saturno é bom pai. Ele cobra e dá para cada um segundo o seu mérito. Pelo menos nesse filme foi assim a história.

Sabemos que nem sempre o trânsito de Saturno ocorre assim. Vai depender de aspectos individuais e do contexto social da pessoa que passa por ele. Mas aí estão alguns aspectos basilares: a sensação de dificuldade, o esforço necessário, a demora, as conquistas que aos poucos vão fazendo sentido, os acordos éticos implicados, a sensação final de missão cumprida.


O filme é inspirador e um exemplo de como se pode viver um trânsito de Saturno, mesmo que a lógica comum tenha dificuldade de entender. Vale a pena!

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

MIL VEZES BOA NOITE – OUTRA ANÁLISE

"Os filmes geram opiniões diferentes. Leiam a seguir a análise de minha amiga Suzana M. Sacchi Padovano com quem troquei mensagens depois da postagem da análise que fiz do filme Mil Vezes Boa Noite, com Juliette Binoche. Agradeço a ela a disponibilidade para o diálogo! Convido a todos que escrevam compartilhando idéias e sugestões. Este espaço tem como um de seus objetivos receber opiniões divergentes que contribuam para nossa reflexão."


Mil Vezes Boa Noite – Outra análise

De fato, como destacado anteriormente, o filme dá margem a inúmeras interpretações e leituras.

Levada pela crítica positiva fui assistir a ele e senti que a repercussão midiática foi muito além do que ele merecia. O filme é do tipo hollywoodiano velado, melodramático e com intenções “artsy” (pretende ser um filme de arte). É presunçoso na sua premissa, como se ela fosse, neste caso específico, de grande importância. Para tal, coloca a personagem numa situação extremamente dicotômica e maniqueísta. A carreira ou a família.

Antes de entrar em posteriores considerações sobre a trama, eu diria que a fotografia do filme é boa, ma non troppo. Os enquadramentos e as montagens são bem convencionais, considerando que a personagem é uma premiadíssima fotógrafa. Perceba que as fotografias de guerra ou terror transbordam dramaticidade inerente e nos conduzem à admiração incondicional sem maiores julgamentos.

De fato, as cenas inicial e final são muito expressivas e a inicial nos promete um filme maravilhoso que aos poucos desaba na monotonia e repetição, com exploração de gestos, detalhes e romantismos desnecessários. Não é um filme contundente, seco. É floreado demais e explora um rebuscamento emocional para cativar facilmente o espectador, o que redundou na falta de fluidez e ritmo desse longa.

A trilha sonora é muito banal, até fraca em certos momentos, com um violino monótono e tradicional em filmes de tristeza e desolação. Nada criativa, apenas correta e comercial.

A partir daí, vejo a trama meio sem sentido. Um bela senhora (não é mais mocinha), super profissional (entre as cinco melhores da área), já casada há algum tempo, com uma super família, um super marido, numa super casa, com uma super condição econômica, na super Irlanda…fica em dúvida cruel se dá sequência a sua saga fotográfica de situações de conflito e risco ou larga tudo e volta para ser dona de casa, olhando as paredes, olhando para as mãos, conversando com os amigos do marido e não sendo mais a protagonista da história (que era o que ela sempre quis ser). Neste ponto direi que Freud explica…

Na vida as coisas não são tão branco e preto, ao contrário, ao ser vivida surgem inúmeras acomodações, relatividades e ajustes. Não haveria necessidade de tanto drama. Ela (Rebecca) poderia perfeitamente continuar sua profissão, escolhendo temas tão importantes quanto, como por exemplo, a sustentabilidade do ecossistema, entre outros, e permanecer com sua adorável família sem correr riscos de vida. Não haveria necessidade de se auto negar, deixando para trás sua amada profissão, sacrificando-se por uma causa maior (a família), como “O Enforcado”, do Tarot, que você menciona – ou sendo uma total egóica/narcisista, sem pensar no engendramento de emoções e dores que estaria causando aos seus relacionamentos abandonados.

Rebecca é, entretanto, o retrato de uma psicopata suicida e isto justifica este dilema.

O final do filme pode deixar alguma dúvida. Acredito que a maioria dos espectadores, pela cena final em que ela não consegue fotografar a vítima, rendendo-se e ajoelhando-se junto a mãe da jovem que parte para a morte, irá pensar ou mesmo desejar, que ela volte ao lar regenerada (final feliz). Segundo sua interpretação, Ana, esta volta seria motivada pela emoção e aceitação de sua da maternidade (“A Imperatriz”, do Tarot).

Penso, caso Rebecca retornasse a sua família, que seria uma eterna infeliz, mesmo tendo tido sua consciência maternal eventualmente resgatada. Como típica psicopata, ela não se regeneraria nem encontraria sua salvação (pois no seu íntimo ela tinha aquela gana pela adrenalina, do agir sem pensar, que você frisou). Além disso, existe a questão que o filme mostra ela sentindo-se culpada todo o tempo e, principalmente, por ter interferido na morte da primeira moça na hora da sua (Rebecca) descida do carro. Fato este que desmistifica a ideia da neutralidade jornalística e mostra, diferentemente do que ela pensava ao desmascarar o terrorismo (que era seu objetivo central e justificava o seu trabalho) - que ela era, desavisada, usada pelos assassinos para alardear ao mundo o que eles faziam (faca de dois gumes).

Rebecca representa a carta do Tarot  “O Louco/ The Fool”, que sob o aspecto psicológico configura a imagem do impulso misterioso dentro de cada um de nós e nos impele ao desconhecido. É o nosso lado jovem e indomado que se atira no precipício sem hesitação, confiando que tudo dará certo. Esta é a primeira carta do Tarot – Arcanos Maiores, aquela que inicia a jornada de cada ser, e dá sequência às outras cartas que virão e representa a ambiguidade e a falta de maturidade para perceber a divindade contida dentro de si. No filme a fotógrafa encontra-se ainda neste estágio inicial ou talvez reiniciando sua jornada, cheia de excitação, medo e terror.  Caso queira salvar-se, deverá percorrer um caminho muito longo e cheio de superações. Mas não acredito nisso. Como disse Albert Camus:

“A vida é a soma de todas as nossas escolhas”.

E, acrescento eu, traz à tona o mistério sobre elas.



Autoria: Suzana M. Sacchi Padovano