quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

BR 716, ENTRE MEMÓRIAS E BIOGRAFIA


“Quero explodir!”, diz Gilda.
“Querida, quem explode é bolha de sabão. Você é uma artista.”,
responde Felipe.


Este filme de Domingos de Oliveira, ator, dramaturgo e cineasta brasileiro, foi vencedor de muitos prêmios no último Festival de Gramado (2016). Entre as obras que ele realizou, estão TODAS AS MULHERES DO MUNDO (1966) e CONFISSÕES DE ADOLESCENTE na TV Cultura (1994-1996). O título BR 716 é uma referência ao endereço (Rua Barata Ribeiro, 716, Rio de Janeiro) em que ele viveu alguns anos de sua vida quando ainda jovem. O local em Copacabana abrigava uma vida de festas e de liberdade.

Aparentemente simples, observamos a técnica madura do cineasta que se apresenta nos movimentos de câmera, no uso do preto/branco e do colorido, da fala de um narrador e de outros detalhes que um espectador atento não deixará passar. Mesmo se não for conhecedor de técnicas de cinematografia, um apreciador de cinema poderá perceber aspectos da arte do diretor e de sua equipe. Sim, podemos usufruir do cinema para além do simples tempo de lazer.  

O uso de recursos de fotografia, as escolhas do roteiro, todas as técnicas são intencionais e emprestam à narrativa sutilezas de significado. É dessa forma que as ênfases são marcadas.

A visão da câmera a partir do teto, o interior do apartamento como centro da maior parte dos acontecimentos, a cena da praia que inicia e termina o filme, são alguns desses sinais responsáveis pela delicadeza da obra. Ainda temos a poesia e a sutil ironia do texto.

Nas cenas iniciais, o protagonista confessa ter vivido aquela época em estado de bebedeira. Visto que bêbados não têm memória, como poderia se lembrar? Abre-se então o espaço para a imaginação a partir das sensações que sobraram. Ficamos avisados que muito do que iremos assistir poderá ser invenção. Impossível não nos lembrarmos de Leila Diniz, com quem o diretor foi casado de 1962 a 1965, quando vemos o fascínio que Gilda provoca em Felipe. Ou é Domingos?


FICÇÃO E BIOGRAFIA

O que leva uma pessoa aos oitenta anos fazer uma visita a seu passado? Domingos de Oliveira, ops!, quero dizer, Felipe, teria cerca de 27 anos, era formado mas se negava a arrumar emprego porque esperava o momento de viver e realizar sua vocação de escritor e cineasta.

Enquanto isso, ele passa por paixões, mulheres e prazeres. A inocência ignorante de Gilda é pacientemente perdoada por Felipe, pois ela é tão linda. A beleza não é o Himalaia de Deus? 

 O protagonista desenvolve um roteiro ao longo da narrativa e chama os amigos para opinar. Com algum rodeio, sai a opinião: não está bom. Na ausência de sucesso, ele passa o tempo como pode. Há um enorme vazio, aquele em que as buscas e desejos são intensos, mas sem definições muito claras. Quase angústia.

Mas não há culpa por não conseguir trabalhar ou levar uma vida como seu pai e mãe desejariam. Ou por não assumir o viés político do momento histórico do Brasil, pré-revolução de 1964, cujos ecos chegam ao grupo. Os ideais revolucionários surgem sim de raspão, e servem para justificar a saída de Gilda em favor de uma vida que lhe provoca mais tesão.

Não há cobranças. Há um tipo de vida possível naquele momento. Com a música de Beethoven acompanhando Felipe nos momentos de solidão. Há também poesia nos diálogos, uma enorme perspectiva de beleza na linguagem.

A cena inicial em uma praia em dia de sol abre um questionamento: você é ator ou personagem, Felipe? Ao fundo vemos por duas vezes o Domingos de Oliveira, ele mesmo passando pela praia de muito sol e mar, o que justifica a ideia de Felipe ser o alter ego do diretor. Esse marzão em espaço aberto e claro é contraponto ao apartamento em que se realizam as festas. Aperto e largueza possíveis. Passado e presente? Interessante contraste.

Até que ponto as histórias de um passado de juventude são memórias ou ficção? Talvez isso não importe muito. Memórias podem ser fruto de desejos e emoções que guardamos, resquícios que sobraram transformados. É uma forma de interpretar a biografia que desenvolvemos ao longo da vida.

Essa sim é uma ideia que vale a pena verificar. Domingos de Oliveira lida com uma absurda liberdade nessa narrativa, em que olha para sua biografia. Inventa diálogos, imagina situações, colore ou tira cor. Vividos ou imaginados, ele lida com memórias ou sensações de acordo com sua vontade.  Dessa forma, tão gentilmente, que nos encantamos com todas as situações. Até mesmo com as irresponsabilidades, mazelas ou dificuldades. Tudo pode ser motivo de nosso riso ou sorrisos. Pois há tanto amor (perdão?) em seu olhar ao registrar suas experiências.

E nós, teremos mais à frente, tal delicadeza com nossa biografia? Nossas memórias, poderão também ser marcadas por uma visão tão docemente triste, crítica e generosa como a dele?

PS1: A seguir o link para a análise do filme feita por Arnaldo Jabor: 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

DE SORRISOS E LUZES DE NATAL

Eu estava sentada esperando a vez para ser atendida numa loja dos correios. Antes de sentar, olhei à volta e cumprimentei as pessoas com quem pude trocar olhar.

Não percebi quando uma senhora se sentou ao meu lado e se dirigiu a mim.“Será que eu poderia ser sua amiga?”; o inesperado da situação me surpreendeu. Pensei: “Como? é isso mesmo o que eu ouvi? Um pedido para ser minha amiga? ” Essas e outras mil perguntas aconteceram nesse momento dentro de mim. O que dizer? O que fazer? 

Era uma figura discreta em meio a um grupo ansioso e também discreto. Blusa e calça comprida pretas. O rosto limpo de pele tratada, o cabelo escuro puxado atrás da nuca. Na faixa dos cinquenta - talvez sessenta? - Tinha a expressão do rosto calma. A voz era clara.

Em seguida, ela continuou a conversa, tirando-me do primeiro susto. O objetivo foi diretamente colocado, explicando-me tranquilamente o motivo da abordagem. “Você me sorriu e eu estou muito só”, disse-me. Daí então falou mais. Mudança de cidade, de bairro, situações que todos temos na vida. 

Mas e a coragem para ir a alguém desconhecido e fazer o pedido, de onde veio? Será assim grande o tamanho da solidão que justificasse esse movimento? Sim, porque ela pode ser de vários tamanhos e tipos. Quantas histórias de solidão conhecemos? Pessoas que a vida abandonou e que não têm onde se apoiar? Estar só como num balão ao léu ou num barco à deriva. Em um deserto sem fim. Mas, há também a solidão que, em vez de doer, nos oferece a alma. Aquela que é amiga. Na verdade, há muitos tipos de solidão.

Talvez a solidão não tenha sido o motivo desse gesto. Ela mesma me disse a razão. Era o sorriso que naquele dia estava disponível para o exterior de mim. O poder de um sorriso, só isso. Nem parece tanto. Mas foi ele que de dentro de minha própria solidão clareou de algum modo os desvãos de uma pessoa que se sentia só. Eu estava aberta ao mundo com ele na face e um contato se fez. 

Este acontecimento fortuito me mostrou como se resolve uma carência que, às vezes, parece até um abismo.

No entanto, eu posso enumerar coisas – pequenas - que me fazem bem nos momentos de solidão. São detalhes que me fazem sentir acompanhada em um contentamento justo. São simples e acordam minha alma. Às vezes, são palavras em uma mensagem ou um telefonema, um recado deixado na secretária. Até as luzes de Natal podem ter essa função e me colocam um sorriso no rosto.

Embora haja quem as tome por artimanha do comércio, esqueço essa possibilidade. Procuro na memória as luzes no elegante perfil das árvores à volta do lago do Parque Ibirapuera. A simples memória delas, me tira da distração do cotidiano e faz meu corpo vivo. Simplesmente eu, acompanhada de mim mesma, com um sorriso, em uma solidão feliz. 

E, de repente um deles, um sorriso distraído, teve essa função de trazer alguém para um contato. Ele acordou uma pessoa, promessa de amizade. Naquele dia, lhe disse: "Sim, obrigada pelo convite. Eu gostaria muito de ser sua amiga."

Será bom se isso puder ser verdade. E agora mesmo, outro sorriso brota em minha face que de tão grande valeria até uma risada por imaginar que faço um contato com você, que me lê e que, com sorte, também tem um sorriso nos lábios e até desenha em sua memória imagens de outras luzes de Natal.
 
PS: O link a seguir é do site Crônica do Dia, em que o texto foi pela primeira vez publicado:http://www.cronicadodia.com.br/2012/12/de-sorrisos-e-luzes-de-natal-ana.html

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

CADÊ A NOTA, VERDI ?


As ondas do rádio começam a falhar. Na sintonia do meu som, entra uma melodia estranha fora do esperado. Diminuo a velocidade do carro, dou um giro no dial. Um pastor fala a fiéis e tenta salvar-lhes a alma. Não seria má ideia salvar minha alma dos pecados do mundo. Porém, não agora. Era hora do CD.

Meu carro roda pela estrada quase vazia. A paisagem continua verde, ampla, embora o céu nublado me negue a luz do sol e o azul do infinito. Qual CD? É preciso atentar para um desejo determinado. Não é qualquer tipo de música que servirá. Uma ópera de Verdi poderá compor um acorde sonante. Suas notas irão fazer agora a sonoplastia da viagem. La Traviata, uma história de amor bem dolorida.


Chegam as personagens com suas roupas de século dezenove, coloridas. Armado o cenário com pesadas cortinas, praças, salões. Toda a imaginação é chamada como companhia, no lugar da natureza em sua imensa e bela solidão. Violeta, Alfredo e seu sonho de amor. Cenas, variações, a complexidade da vida, os paradoxos nos relacionamentos. Óperas carregam o poder imenso de trazer o mundo da experiência. Uma quantidade enorme de informação. A alegria e a química amorosa, as intrigas, o sofrimento e a esperança. Parte da grandeza e da tragédia humanas.

Essa ópera me encanta. Embora conhecida, a melodia não me cansa. Melodia eterna. Vácuo no infinito. Buraco branco.

O trecho da abertura inicia lentíssimo e cresce, ma non troppo. Me impacta de novo como se fosse a primeira vez. Nunca esquecer. Conjunto de sons tão delicado. Relembrar como se fosse a primeira vez.

E aquela nota que falta? Em conversa com um amigo que sabe música, conversamos certa vez sobre isso. Observação que me persegue. Perguntei-lhe se havia percebido o detalhe de uma específica sequência melódica, logo no início da abertura. No que seria a introdução. Você sabe de alguma informação a esse respeito? Será engano meu? Falta de informação técnica? Nada disso. Ele também não sabe e, talvez, nem tivesse percebido.

A sequência de notas segue num crescendo e uma última nota, que fecharia um conjunto naturalmente organizado dentro de uma série normal, é eliminada. Aquela nota que encerra a série foi cortada. Não, não prejudica a melodia que segue e chega à sequência seguinte, num alçar de voo, perfeita, magistral.

Onde está a nota oculta naquele compasso? Brincadeira do compositor com a música, com os tempos do compasso. Impossível saber o que teria passado na cabeça do compositor. Não terá sido esquecimento, com certeza. Falta um sol, um mi – ou um dó? Impossível aguentar. Fica a sensação da falta e a corrida desesperada ao que vem depois. O alívio curador seguindo o que é quase um desespero no ar.

Talvez esta tenha sido a estratégia criativa do compositor. Criar o salto, o preenchimento da imaginação. E eu, no diálogo com a falta, paralisada naquele som ausente. Onde? Traço de genialidade a mexer com o ouvinte. Com a minha fragilidade. Fico na beira do despenhadeiro.

Ponho o trecho a tocar novamente. A garganta quer gritar a nota intencionalmente excluída da linha melódica onde ela deveria estar. O descanso na série seguinte não me apazigua a alma. Intervalo absurdo. E a delicadeza da ária continua.

Na memória, permanece a falta. No meu monólogo, sobra a presença do músico. Sonoplastia largamente compensatória da ausência do sol e do azul. Reticências e suspensão de ritmo.
Cadê a nota, Verdi?

PS: Essa crônica foi publicada a primeira vez em Maio de 2009 no site Crônica do Dia.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

PAPO DE ÔNIBUS


Eu subi no ônibus e me sentei na primeira cadeira do corredor que encontrei, cansada e contente por não ter ficado em fila. Havia um senhor de cabelos grisalhos na janela. Assim que o ônibus saiu, ele começou. “Imenso, este ônibus”, disse. Concordei. Preferia ficar quieta e levar minha pequena jornada em silêncio, mas ele ainda falou algo a que não dei atenção.

Ele não se importou e, poucos segundos depois, continuou puxando assunto.

— Quanta gente ao mesmo tempo vai nele. Mais de mil pessoas.

— Fez quatro anos em março que ele me apareceu da primeira vez. De lá pra cá, mais três vezes. Jesus mudou minha vida.



— Eu não sei ler. Jesus não quis que eu aprendesse. Mais de cem mensagens eu já entreguei que ele mandou. A Igreja hoje tem às vezes só cinquenta. A senhora é evangélica?

Ops, será que ouvi mal? Um exagero. Não, acho que ouvi mal. Mas ele continuou em várias considerações sobre tamanho de ônibus e população. Logo depois, mudou o assunto.

Imaginei que seria mais uma pessoa que se convertera pela força da fé.

Não sou.” Se eu fosse, talvez pudesse entender o que é entregar mensagens. Ele continuou em sua discreta incontinência verbal: “Na terra não podemos consertar o mundo. Jesus pode. Ele me ensinou. A Bíblia é sagrada.” O cheiro de guardado do blazer de lã não combinava com os sapatos marrons.

— Não aprendi a ler porque Jesus não quis. No ano passado o pastor ficou doente e desenganado. E com as orações ele ficou bom. Sou do Ceará. O povo que vai da Alemanha para o Japão gasta menos tempo que o que vem do Ceará.

“Não aprendi a ler porque ele não quis.” Essa frase repetida doeu em mim. Muito. Talvez tanto como nele próprio.

De repente, fez-se uma ligação entre eu e aquele desconhecido. Ele não era mais um cidadão no ônibus, passageiro anônimo da cidade grande. Era companheiro da triste sina de uma vida difícil, também perdido entre ruas e ônibus. Eu estava sofrendo por imaginar a situação de um desejo interrompido — ferida aberta — e sua atitude respeitosa à autoridade: não aprendi porque ele não quis.

Eu estava rendida à solidariedade humana através de uma dor. Era um drama de alguém que se perguntava algumas coisas, mas não todas. Procurava comunicação e expressão para as aflições de sua alma curiosa. Alívio para sua insatisfação, cobertura de uma defasagem entre sua expectativa e a realidade. Não podia dar muita continuidade a seus pensamentos renitentes. Ele poderia se perguntar: por quê? Mas, não. Parava antes das possibilidades, numa espécie de aceitação, loucura mansa. Delírio?

Ele não se dava o direito de questionar por que papo de ônibus é assim. Eu não queria conversa. mesmo assim, o encontro aconteceu, em meio à corrida do dia-a-dia, me apresentando o ser humano em sua tragédia. Trágico era ele querer ler e não poder investir contra o que no seu imaginário — a autoridade máxima da hierarquia de sua religião — o impedia de ler. Dentro dele não havia espaço para nada diferente disso. E se ... quem sabe? Uma revolta, um questionamento.  Um gesto de energia. Uma pedra na mão. Nada. Havia uma parede enorme de inconsciência entre ele e a realidade. Injustiças de um mundo mau. Um desperdício. Um analfabeto funcional em tudo na vida. Um quase. Um projeto mal acabado. Tão desajeitado. É assim.