segunda-feira, 30 de outubro de 2017

ADOLESCENTES E FANTASMAS ITALIANOS

Ana Maria M. González


Dois adolescentes e a presença das disputas da Máfia. Imaginação, excelente fotografia e direção. Eis os ingredientes para este bom filme: O FANTASMA DA SICÍLIA. A entrevista com os diretores, que estiveram em SP a convite da organização do evento, deu-me elementos para uma reflexão a respeito de aspectos da arte do cinema e da formação de público jovem. 

NOVIDADES DOS FESTIVAIS DE CINEMA 

Aconteceu em setembro último em oito cidades brasileiras um festival de cinema italiano, iniciado em Lisboa (2008). Tive a oportunidade de entrevistar os diretores Fabio Grassadonia e Antonio Piazza desse filme, que foram convidados pela organização do evento para vir ao Brasil. Esse seu segundo longa abriu a Semana de Crítica do Festival de Cannes deste ano e vale lembrar também que eles ganharam o prêmio revelação de Cannes em 2013 com seu primeiro no longa metragem (SALVO).

Este filme é uma adaptação do conto “Non saremo confusi per sempre” de Marco Mancassola e parte de um incidente real ocorrido na Itália nos anos 90, em que Giuseppe Di Matteo é sequestrado. Sua amiga e namorada (Luna) sentindo falta dele na escola, sai em busca de solução. É a partir de sua busca que se constrói a narrativa com características de sua imaginação e boas doses de desconsolo, tristeza e saudade. 

A entrevista que os diretores me concederam ocorreu em uma tarde clara à sombra de uma larga árvore. Foi interessante saber como anda a opção pelo cinema entre os jovens italianos e como esses diretores lidam com essa questão. Muitas semelhanças com o que ocorre no Brasil.  
 

CINEMA E LITERATURA     

A história do filme se baseia em um texto literário  e nos faz lembrar de Romeu e Julieta, também italianos. E fomos indagar o motivo desta escolha. Segundo os diretores, a garota Luna que é uma personagem inventada, permite a Giuseppe a experiência do amor que ele não teve em vida. 

E esse era o único ponto possível de ingresso na história porque a realidade era dura demais. Sem essa mudança, o filme contaria uma história sem esperança e eles desejavam que o filme fosse um ato de amor à história de Giuseppe. 

Luna é solitária, criativa e gosta de ficar quieta, fechada, escrevendo e desenhando. Não tem um contato fácil com o mundo natural que a circunda. Ela afirma que se sonhamos qualquer coisa, podemos dizer que isso existe. 


Giuseppe, ao contrário, é um garoto social, de comportamento vital, em harmonia com a natureza. Ele era apaixonado por cavalos e chegou a ter sucesso no salto de obstáculos na região em que morava. Era intenção dos diretores manter dados da realidade de Giuseppe. 

Temos a insatisfação e rebeldia dos adolescentes em contato com o inalcançável mundo do adulto com suas questões sociais e políticas. Por outro lado, temos também outras realidades criadas que abrem espaços para a experiência de amor. A possibilidade do amor entre os jovens é construída na imaginação. É no céu que eles se encontram, já que Giuseppe está no inferno. Trata-se de uma realidade escura em que não há tempo, imóvel, em que o casal se encontra a despeito do tempo da morte. A imaginação ganha a função nobre de salvar a humanidade. 


Além de cavernas e águas profundas, temos a cena das colunas gregas no alto de um monte, perto da praia, à frente da extensão imensa do mar. Há vento e horizonte. Esse espaço surge duas vezes e é a imagem da beleza siciliana que resiste a tudo, ao longo dos séculos e que se confronta à brutalidade, como se essa beleza fosse um baluarte contra o mal. 

Segundo os diretores, ainda que haja a opressão na Sicília, os garotos sabem reconhecer o valor dessa beleza. A experiência de dor faz Luna aprender a viver. Nesse espaço atemporal, ela refaz sua sensação de vida.

                             
AS PREFERÊNCIAS DOS DIRETORES

A literatura e a experiência como roteiristas fizeram parte da formação dos diretores e contribuíram sobremaneira para a realização dos dois longas, já que eles não fizeram um curso técnico de cinema. O seu método de trabalho acontece durante o processo de escrita. Nesse momento todos os detalhes de cenas, fotos e som são pensados. 


Sua prática de cinema tem um compromisso de refletir sobre a realidade, mas também de formar público. Por isso O FANTASMA DA SICÍLIA é um filme dedicado a um garoto siciliano e foi desejo que ele chegasse ao público jovem. Diferentemente de um filme de autor, que muitas vezes tem ambições intelectuais, eles tiveram a intenção de acompanhar o expectador em uma viagem emotiva, de modo a não passar pelo filtro protetivo da intelectualidade para que ele se abandonasse aos sentimentos dos protagonistas da história. Fábio e Antonio desejavam entrar na história com o coração, com a intensidade de uma experiência sensorial, pelas imagens. 



O público jovem em geral não gosta dos filmes italianos considerados por ele pouco interessante já que há uma natural preferência por aventuras e filmes de outras mídias. O que tem acontecido com esse filme é diferente e realiza as intenções dos diretores. 

A partir dessas observações, perguntei então o que é cinema para eles. Para Antonio Piazza, que respondeu sem hesitação, o cinema é o sonho, é sonhar. “Nosso imaginário cinematográfico guarda um legado do cinema clássico.”
 
Fábio Grassadonia expressa uma experiência pessoal. Em sua aproximação com os livros e com as narrativas sempre houve a participação da mente. Mas o cinema, que viveu desde pequeno com o pai, é uma experiência de se abandonar às emoções daquilo que está sendo visto. Ele diz: “Ainda que eu estude cinema, que ensine, que me interessa como funciona a máquina, quando vou ao cinema, vivo uma experiência emotiva.” No contato com a narrativa, com os livros, ele diz ter a possibilidade de afinar seus instrumentos e recursos. “No cinema, tenho a experiência de ser um expectador. ” 

A entrevista elucidou algumas intenções e ideias dos diretores acerca desse filme e de como eles desenvolvem sua obra. 

Mas, ainda há muito a ver nesse filme que traz um universo de metáforas e poesia, uma realidade em que o amor se torna possível a despeito da morte. Encontramos cores escuras, surpresas e mistério, um mundo lunar. E também uma praia, um mar imenso e colunas gregas atemporais, um mundo solar. Um filme que gera mundos de arte e de beleza. 

Mas, mais que tudo isso, é um filme que nos comove o coração e nos oferece uma experiência que além de estética é também emotiva. Mais uma expressão da arte do cinema.