O JOGO ENTRE DOIS INSTINTOS
O filme Mil
vezes boa noite tem Juliette Binoche no papel principal e muitos
outros motivos que o tornam especial. Boa fotografia, um repertório de
situações interessantes: vocação, ideais sociais, conflito entre família e
trabalho, beleza. É daqueles filmes que nos alimentam com boas razões para
pensar. Leia a seguir.
VOCAÇÃO OU FAMÍLIA
O trabalho do fotógrafo
John Christian Rosenlund e a direção competente de Erik Poppe (2013), nos
contam a história de u
ma prestigiada fotógrafa de zonas de guerra (Rebecca) e sua relação com marido e duas filhas. O conflito ocorre por que a família não suporta mais a sensação de tê-la sempre em situações de perigo.
A personagem
central se divide entre a denúncia dos males do mundo e o amor da família.
Certo? Não. Se fosse simples assim, não seria o grande filme que é. Ele vai
além de qualquer simplificação. Senão vejamos os detalhes da complexidade da
narrativa.
O filme inicia em
uma belíssima sequencia em que Rebecca, testemunha de uma ação de terrorismo,
quase morre. Isso gera uma reação do marido que não aceita mais esse tipo de
vida da esposa, nem as filhas aceitam a distância da mãe. Daí, em uma tentativa
honesta, a personagem decide assumir suas funções na família. A relação com o
marido se restabelece. A filha mais velha Stephie descobre algumas afinidades
existentes entre elas, o que promove a aproximação.

O que faltou para
ela manter a postura e palavra assumidas? A definição ou não dessa resposta é
parte inteligente da trama, talvez seja seu verdadeiro núcleo.
INSTINTOS EM JOGO
A nova
circunstância vivida junto à filha mais velha conduz Rebecca a um segundo
momento de questionamento. A motivação de sua ação profissional confessada em
primeira instância era social e política. Mas, a filha Stephie lhe pergunta por
que ela se coloca em situações assim. A resposta traz nova versão: “É só
instinto, você vai indo, não é por pensar.”
Será que ela mente
quando diz que o mundo precisa de sua denúncia e que quer que as pessoas
engasguem ao café da manhã ao ver suas fotos no jornal? Ela não mente, sua
indignação pode ser real. Mas essa talvez seja apenas parte da verdade. Há mais
em jogo.
A segunda confissão
admite que há algo dentro de si sobre o qual ela não tem controle; algo de que
não pode fugir por ser pulsão instintiva. Um impasse está criado. Então, como
sair dessa situação?
Mas a sequencia
narrativa ainda guarda outra surpresa para nós. Ela retorna ao trabalho em Cabul,
no mesmo local que inicia o filme. Só que desta vez é diferente. Fica aflita,
descontrolada e se desespera ao ver uma adolescente em preparação para o
sacrifício terrorista. Por vezes, ela levanta a máquina, mas não faz o clique.
Sucumbindo, ela se ajoelha ao chão, entregue à dor e angústia, semelhante à da
mulher que está a seu lado, que poderia ser a mãe da adolescente que vai se
imolar.
A cena se fecha.
Não há outras definições que nos indiquem o que vem depois. Sem uma conclusão,
devemos decidir por nossa conta o que aconteceria com Rebecca daí em diante.
Várias interpretações são possíveis.
Minha hipótese é
que nesse momento ela vive uma dor maior. Pela segunda vez, foi refeito o
vínculo materno com ambas as filhas. Seu instinto materno está forte e vivo.
Ele é sacudido intensamente nessa cena.
Daí em diante ela
teria condições para deixar de fotografar cenas de guerra. Somente outro
instinto tão forte como o materno poderia promover uma mudança radical a ponto
de ela superar seu instinto agressivo. Mas, isso é apenas uma hipótese.
Só podemos contar
com o que a narrativa do filme nos oferece. Ela não oferece soluções, mas
somente imagens e metáforas com que podemos dimensionar a crise da personagem.
METÁFORAS E SIGNIFICADOS
Como o filme é
econômico nos diálogos, podemos imaginar o tamanho de tal crise a partir de
imagens que ganham lugar na representação de sentidos.
Assim, há longas
cenas em que ela é vista sozinha no banheiro, olhando a própria mão, ou junto à
janela ou ainda passando a mão por panos. Tais belas imagens nos falam de
solidão reflexiva e de introversão.
Há também um sonho
recorrente em que um corpo feminino bóia na água de cabeça para baixo. Essa
imagem nos conduz a uma carta do tarô, o enforcado, presente no imaginário
popular. É inevitável essa associação e rica a interpretação que nos traz as
ideias de sacrifício e de destino. Nada mais coerente em relação ao que Rebecca
vive: uma crise a leva a decisões que implicam em sacrifícios. Há desejos de
defender ideais sociais e o destino escolhido de ter uma família. E há também
os impulsos instintivos e incontroláveis de sua natureza assumidamente
guerreira.
Essa é uma das
grandezas do filme: o retrato de um dilema pessoal, a experiência biográfica de
escolhas particulares e difíceis.
Embora as cenas
inicial e final já valham a ida ao cinema, todo o filme é construído nos
limites entre a beleza da arte e o trágico mistério da vida. Há um olho que
busca no escuro, amedrontado e em alerta, arregalado procurando a luz. Há uma
máquina fotográfica pronta a clicar sempre, na observação da realidade. E há a
natureza humana em sua complexidade.
Rebeca confessou a
sua filha que teria sido “muito brava quando jovem, tendo a fotografia como
salvação”, mais velha sua história sofreria uma grande mudança, mas a
busca pela salvação continua atual.
Mais velha,
trata-se de outra salvação. A natureza humana sempre busca salvar-se perante a
complexidade da vida. Como resolver esse dilema?
Para
saber mais sobre Tarô, recomendo o site de Constantino Riemma
Gostei muito da sua análise ! E fico cada vez mais impressionado com a incompetência da crítica de cinema no Brasil. Um filme dessa categoria passa desapercebido. E quando há alguma crítica, é toda voltada para os "defeitos" da obra. Não se fala do incrível trabalho da fotógrafa e nem da importância política que a fotografia pode adquirir até para a mudança dos rumos dessas guerras tão selvagens . a "revelação " muda os rumos do conflito. E é por isso que suas fotos são censuradas. A fotografia pode salvar a fotógrafa e, também, milhares de outras vidas !
ResponderExcluirAmiga, escrevi um enorme comentário e ele foi apagado. Não é a primeira vez que isto acontece com este blogger... Outra hora escrevo novamente. Estou muito aborrecida com isso. Beijo
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