segunda-feira, 21 de novembro de 2016

O MESTRE DOS GÊNIOS



No filme "O Mestre dos gênios" encontramos duas pessoas que se conhecem e se encantam mutuamente. E depois de um tempo, acabam se desentendendo. Já vimos essa história antes, não é mesmo? Relacionamentos humanos são teste importante e instrumento de percepção principalmente de nossas fragilidades. Quando conseguimos ultrapassá-las, podemos até crescer. 




encontros e paixões

A primeira cena em slow motion focaliza pés, chapéus e guarda-chuvas, numa sequência cadenciada. Um desfile nova-iorquino elegante e sinistro ao mesmo tempo. A cor da fotografia é sombria adequada à época de crise de 1929. A direção de arte e construção de época são primorosas, o diretor do filme é Michael Grandage.

Enquanto isso, os pés impacientes do escritor Tomas Wolfe (Jude Law) pisam com força a água empoçada, querendo furar o chão. Fumando, ele olha para cima onde o editor Maxwell Perkins (Colin Firth) deve estar avaliando seu texto. A espera é tortuosa e a água da chuva que deixa seus cabelos ensopados não o incomoda. Ele habita outra realidade.

Essa primeira cena nos desenha o temperamento de Tomas Wolfe, exuberante, impulsivo e até briguento. Um comportamento sem limites e inovador, ao mesmo tempo em que é sedutor. Com dificuldade de foco e uma inconstância física, com tiques nervosos difíceis de serem controlados. Ele vai se deparar com a estabilidade de Perkins, com sua capacidade de disciplina e atenção. Com seu bom senso e equilíbrio emocional.

Essa radical diferença de temperamento entre as personagens a princípio não impede a grande atração que um exerce sobre o outro. O editor percebe de forma íntima e pessoal a natureza vibrante que o escritor possui. Ele reconhece a força positiva desse temperamento. Ocorre, então, a cooperação entre as necessidades e possibilidades dos dois. Tão bem que aparecem até ciúmes na companheira de Tom (Nicole Kidman). Ela sabe que teria sido de alguma forma substituída pelo editor na vida de Tom.

Porém, no convívio há um desgaste que leva ao rompimento. Tom não tem a necessária introversão para elaborar o que é desequilibrado em sua natureza. O contato vai se tornando cada vez mais insuportável para os dois.

O relacionamento desanda. Tom não consegue entender a limitação que Perkins lhe pede, sugerindo inclusive que ele está errado em sua maneira de viver. Ele se irrita com o comedimento de Perkins, que por sua vez explode em defesa própria: “Vivo a vida de forma diferente. ”

Afastam-se. A afetividade não é suficiente. Por mais que Perkins tenha visto nele a figura de um filho, Tom com sua natureza rebelde, livre de compromissos, de forma até infantil e com argumentos irracionais, não se submete às demandas e à autoridade do editor. E ele precisava tanto da figura de um pai.

Mesmo assim, ocorre tardiamente a revisão do comportamento de Tom, revelada na carta de despedida a Perkins. Teria sido essa carta de Tom um alívio para suas possíveis culpas nesse momento de consciência?

OS GÊNIOS E A LITERATURA

A tradução em português do título do filme (O Mestre dos Gênios) privilegia a figura do escritor. O título Genius em inglês é mais adequado, se pensarmos que as duas personagens centrais são igualmente geniais em suas funções.  Enquanto o livro é criação do escritor, é do editor a tarefa de colocar bons livros nas mãos dos leitores, sendo assim esteio para tal talento.

E o contato entre os dois nos aproxima da paixão de ambos pelo mundo da ficção. Mergulhamos no mundo da literatura para perceber detalhes na escolha das palavras, na construção das personagens e na maneira como uma história é contada.
Sabemos pelas palavras de Perkins que “A história é o que importa, não o número de palavras”. O impacto de uma descrição deveria ser como um relâmpago. A escolha das palavras adequadas para conduzir o leitor ao essencial, como um raio, simples e sem adornos.

Perkins cuida para que os excessos de estilo de Wolfe sejam eliminados. Simplificar frases, eliminar senso-comum, moldar o título para expressar a síntese da obra. Sem retórica, sem digressão. Por sua vez, para Tom, tudo importa: imagens, adjetivos e sons. É um diálogo entre diferenças. E a partir dela podemos entender de onde vem a inspiração desse escritor e quais são as dúvidas do editor, que se divide entre a necessidade de um público e a expressão espontânea de um talento.

NARRATIVAS AO PÉ DO FOGO

Mas, uma cena permanece dentro de mim. Era entardecer e eles visitam o topo do prédio em que Tom morou ao chegar a Nova York. É uma parada especial para lembranças, em seu retorno após a viagem à Europa. Ouvimos relatos de experiências de Tom e reflexões de Perkins. Um conjunto que oferece poder àquele momento.
Perkins vai longe, a um lugar em que homens ancestrais se reúnem ao redor do fogo para contar histórias. Um ritual coletivo de narração para afastar o medo. Ou então, um ritual para dar sentido ao absurdo da experiência humana.
Não seria essa ainda a função da literatura e das histórias de hoje em dia? Talvez permaneça vivo ainda entre nós essa força das narrativas, como se a liturgia de escutar ou falar histórias repetisse um gesto, o mesmo de sempre, de novo e de novo inaugurado. Ao pé do fogo ou nas palavras lidas em voz alta ou no silêncio no texto literário. Um momento de poesia e de imaginação necessário à vida.

A história é o que importa e os personagens falam à alma. E ele e Tom leem e declamam textos, promovem prazer acordando significados, sendo eles mesmos personagens porque segundo Tom todos somos personagens.  

E nessa cena, nesse final de dia, na frente da cidade, abraçados pelo mesmo ideal, frente às luzes da cidade, sob o céu e a amplidão do horizonte, eles reafirmam seu amor à literatura e à ficção. São nesses instantes eles mesmos personagens de uma grande história de irmandade entre seres humanos.


O MESTRE DOS GÊNIOS



No filme "O Mestre dos gênios" encontramos duas pessoas que se conhecem e se encantam mutuamente. E depois de um tempo, acabam se desentendendo. Já vimos essa história antes, não é mesmo? Relacionamentos humanos são teste importante e instrumento de percepção principalmente de nossas fragilidades. Quando conseguimos ultrapassá-las, podemos até crescer. 




encontros e paixões

A primeira cena em slow motion focaliza pés, chapéus e guarda-chuvas, numa sequência cadenciada. Um desfile nova-iorquino elegante e sinistro ao mesmo tempo. A cor da fotografia é sombria adequada à época de crise de 1929. A direção de arte e construção de época são primorosas, o diretor do filme é Michael Grandage.

Enquanto isso, os pés impacientes do escritor Tomas Wolfe (Jude Law) pisam com força a água empoçada, querendo furar o chão. Fumando, ele olha para cima onde o editor Maxwell Perkins (Colin Firth) deve estar avaliando seu texto. A espera é tortuosa e a água da chuva que deixa seus cabelos ensopados não o incomoda. Ele habita outra realidade.

Essa primeira cena nos desenha o temperamento de Tomas Wolfe, exuberante, impulsivo e até briguento. Um comportamento sem limites e inovador, ao mesmo tempo em que é sedutor. Com dificuldade de foco e uma inconstância física, com tiques nervosos difíceis de serem controlados. Ele vai se deparar com a estabilidade de Perkins, com sua capacidade de disciplina e atenção. Com seu bom senso e equilíbrio emocional.

Essa radical diferença de temperamento entre as personagens a princípio não impede a grande atração que um exerce sobre o outro. O editor percebe de forma íntima e pessoal a natureza vibrante que o escritor possui. Ele reconhece a força positiva desse temperamento. Ocorre, então, a cooperação entre as necessidades e possibilidades dos dois. Tão bem que aparecem até ciúmes na companheira de Tom (Nicole Kidman). Ela sabe que teria sido de alguma forma substituída pelo editor na vida de Tom.

Porém, no convívio há um desgaste que leva ao rompimento. Tom não tem a necessária introversão para elaborar o que é desequilibrado em sua natureza. O contato vai se tornando cada vez mais insuportável para os dois.

O relacionamento desanda. Tom não consegue entender a limitação que Perkins lhe pede, sugerindo inclusive que ele está errado em sua maneira de viver. Ele se irrita com o comedimento de Perkins, que por sua vez explode em defesa própria: “Vivo a vida de forma diferente. ”

Afastam-se. A afetividade não é suficiente. Por mais que Perkins tenha visto nele a figura de um filho, Tom com sua natureza rebelde, livre de compromissos, de forma até infantil e com argumentos irracionais, não se submete às demandas e à autoridade do editor. E ele precisava tanto da figura de um pai.

Mesmo assim, ocorre tardiamente a revisão do comportamento de Tom, revelada na carta de despedida a Perkins. Teria sido essa carta de Tom um alívio para suas possíveis culpas nesse momento de consciência?

OS GÊNIOS E A LITERATURA

A tradução em português do título do filme (O Mestre dos Gênios) privilegia a figura do escritor. O título Genius em inglês é mais adequado, se pensarmos que as duas personagens centrais são igualmente geniais em suas funções.  Enquanto o livro é criação do escritor, é do editor a tarefa de colocar bons livros nas mãos dos leitores, sendo assim esteio para tal talento.

E o contato entre os dois nos aproxima da paixão de ambos pelo mundo da ficção. Mergulhamos no mundo da literatura para perceber detalhes na escolha das palavras, na construção das personagens e na maneira como uma história é contada.
Sabemos pelas palavras de Perkins que “A história é o que importa, não o número de palavras”. O impacto de uma descrição deveria ser como um relâmpago. A escolha das palavras adequadas para conduzir o leitor ao essencial, como um raio, simples e sem adornos.

Perkins cuida para que os excessos de estilo de Wolfe sejam eliminados. Simplificar frases, eliminar senso-comum, moldar o título para expressar a síntese da obra. Sem retórica, sem digressão. Por sua vez, para Tom, tudo importa: imagens, adjetivos e sons. É um diálogo entre diferenças. E a partir dela podemos entender de onde vem a inspiração desse escritor e quais são as dúvidas do editor, que se divide entre a necessidade de um público e a expressão espontânea de um talento.

NARRATIVAS AO PÉ DO FOGO

Mas, uma cena permanece dentro de mim. Era entardecer e eles visitam o topo do prédio em que Tom morou ao chegar a Nova York. É uma parada especial para lembranças, em seu retorno após a viagem à Europa. Ouvimos relatos de experiências de Tom e reflexões de Perkins. Um conjunto que oferece poder àquele momento.
Perkins vai longe, a um lugar em que homens ancestrais se reúnem ao redor do fogo para contar histórias. Um ritual coletivo de narração para afastar o medo. Ou então, um ritual para dar sentido ao absurdo da experiência humana.
Não seria essa ainda a função da literatura e das histórias de hoje em dia? Talvez permaneça vivo ainda entre nós essa força das narrativas, como se a liturgia de escutar ou falar histórias repetisse um gesto, o mesmo de sempre, de novo e de novo inaugurado. Ao pé do fogo ou nas palavras lidas em voz alta ou no silêncio no texto literário. Um momento de poesia e de imaginação necessário à vida.

A história é o que importa e os personagens falam à alma. E ele e Tom leem e declamam textos, promovem prazer acordando significados, sendo eles mesmos personagens porque segundo Tom todos somos personagens.  

E nessa cena, nesse final de dia, na frente da cidade, abraçados pelo mesmo ideal, frente às luzes da cidade, sob o céu e a amplidão do horizonte, eles reafirmam seu amor à literatura e à ficção. São nesses instantes eles mesmos personagens de uma grande história de irmandade entre seres humanos.


PS 1: É difícil viver na cidade de São Paulo. Por outro lado, ela tem aspectos apaixonantes. Leia o texto e discorde de mim.  http://coisasdoimaginario.blogspot.com.br/2016/11/paixao-pelo-centro-ii.html

PS 2: A passagem dos cálculos manuais astrológicos para o uso dos programas brasileiros em computadores pessoais teve momentos interessantes.  Conheça essa história no link a seguir. http://historiastrologsp.blogspot.com.br/2016/11/dos-calculos-manuais-aos-programas_9.html 

O MESTRE DOS GÊNIOS



No filme "O Mestre dos gênios" encontramos duas pessoas que se conhecem e se encantam mutuamente. E depois de um tempo, acabam se desentendendo. Já vimos essa história antes, não é mesmo? Relacionamentos humanos são teste importante e instrumento de percepção principalmente de nossas fragilidades. Quando conseguimos ultrapassá-las, podemos até crescer. 


encontros e paixões

A primeira cena em slow motion focaliza pés, chapéus e guarda-chuvas, numa sequência cadenciada. Um desfile nova-iorquino elegante e sinistro ao mesmo tempo. A cor da fotografia é sombria adequada à época de crise de 1929. A direção de arte e construção de época são primorosas, o diretor do filme é Michael Grandage.

Enquanto isso, os pés impacientes do escritor Tomas Wolfe (Jude Law) pisam com força a água empoçada, querendo furar o chão. Fumando, ele olha para cima onde o editor Maxwell Perkins (Colin Firth) deve estar avaliando seu texto. A espera é tortuosa e a água da chuva que deixa seus cabelos ensopados não o incomoda. Ele habita outra realidade.

Essa primeira cena nos desenha o temperamento de Tomas Wolfe, exuberante, impulsivo e até briguento. Um comportamento sem limites e inovador, ao mesmo tempo em que é sedutor. Com dificuldade de foco e uma inconstância física, com tiques nervosos difíceis de serem controlados. Ele vai se deparar com a estabilidade de Perkins, com sua capacidade de disciplina e atenção. Com seu bom senso e equilíbrio emocional.

Essa radical diferença de temperamento entre as personagens a princípio não impede a grande atração que um exerce sobre o outro. O editor percebe de forma íntima e pessoal a natureza vibrante que o escritor possui. Ele reconhece a força positiva desse temperamento. Ocorre, então, a cooperação entre as necessidades e possibilidades dos dois. Tão bem que aparecem até ciúmes na companheira de Tom (Nicole Kidman). Ela sabe que teria sido de alguma forma substituída pelo editor na vida de Tom.

Porém, no convívio há um desgaste que leva ao rompimento. Tom não tem a necessária introversão para elaborar o que é desequilibrado em sua natureza. O contato vai se tornando cada vez mais insuportável para os dois.

O relacionamento desanda. Tom não consegue entender a limitação que Perkins lhe pede, sugerindo inclusive que ele está errado em sua maneira de viver. Ele se irrita com o comedimento de Perkins, que por sua vez explode em defesa própria: “Vivo a vida de forma diferente. ”

Afastam-se. A afetividade não é suficiente. Por mais que Perkins tenha visto nele a figura de um filho, Tom com sua natureza rebelde, livre de compromissos, de forma até infantil e com argumentos irracionais, não se submete às demandas e à autoridade do editor. E ele precisava tanto da figura de um pai.

Mesmo assim, ocorre tardiamente a revisão do comportamento de Tom, revelada na carta de despedida a Perkins. Teria sido essa carta de Tom um alívio para suas possíveis culpas nesse momento de consciência?

OS GÊNIOS E A LITERATURA

A tradução em português do título do filme (O Mestre dos Gênios) privilegia a figura do escritor. O título Genius em inglês é mais adequado, se pensarmos que as duas personagens centrais são igualmente geniais em suas funções.  Enquanto o livro é criação do escritor, é do editor a tarefa de colocar bons livros nas mãos dos leitores, sendo assim esteio para tal talento.

E o contato entre os dois nos aproxima da paixão de ambos pelo mundo da ficção. Mergulhamos no mundo da literatura para perceber detalhes na escolha das palavras, na construção das personagens e na maneira como uma história é contada.
Sabemos pelas palavras de Perkins que “A história é o que importa, não o número de palavras”. O impacto de uma descrição deveria ser como um relâmpago. A escolha das palavras adequadas para conduzir o leitor ao essencial, como um raio, simples e sem adornos.

Perkins cuida para que os excessos de estilo de Wolfe sejam eliminados. Simplificar frases, eliminar senso-comum, moldar o título para expressar a síntese da obra. Sem retórica, sem digressão. Por sua vez, para Tom, tudo importa: imagens, adjetivos e sons. É um diálogo entre diferenças. E a partir dela podemos entender de onde vem a inspiração desse escritor e quais são as dúvidas do editor, que se divide entre a necessidade de um público e a expressão espontânea de um talento.

NARRATIVAS AO PÉ DO FOGO

Mas, uma cena permanece dentro de mim. Era entardecer e eles visitam o topo do prédio em que Tom morou ao chegar a Nova York. É uma parada especial para lembranças, em seu retorno após a viagem à Europa. Ouvimos relatos de experiências de Tom e reflexões de Perkins. Um conjunto que oferece poder àquele momento.
Perkins vai longe, a um lugar em que homens ancestrais se reúnem ao redor do fogo para contar histórias. Um ritual coletivo de narração para afastar o medo. Ou então, um ritual para dar sentido ao absurdo da experiência humana.
Não seria essa ainda a função da literatura e das histórias de hoje em dia? Talvez permaneça vivo ainda entre nós essa força das narrativas, como se a liturgia de escutar ou falar histórias repetisse um gesto, o mesmo de sempre, de novo e de novo inaugurado. Ao pé do fogo ou nas palavras lidas em voz alta ou no silêncio no texto literário. Um momento de poesia e de imaginação necessário à vida.

A história é o que importa e os personagens falam à alma. E ele e Tom leem e declamam textos, promovem prazer acordando significados, sendo eles mesmos personagens porque segundo Tom todos somos personagens.  

E nessa cena, nesse final de dia, na frente da cidade, abraçados pelo mesmo ideal, frente às luzes da cidade, sob o céu e a amplidão do horizonte, eles reafirmam seu amor à literatura e à ficção. São nesses instantes eles mesmos personagens de uma grande história de irmandade entre seres humanos.


PS 1: É difícil viver na cidade de São Paulo. Por outro lado, ela tem aspectos apaixonantes. Leia o texto e discorde de mim.  http://coisasdoimaginario.blogspot.com.br/2016/11/paixao-pelo-centro-ii.html

PS 2: A passagem dos cálculos manuais astrológicos para o uso dos programas brasileiros em computadores pessoais teve momentos interessantes.  Conheça essa história no link a seguir. http://historiastrologsp.blogspot.com.br/2016/11/dos-calculos-manuais-aos-programas_9.html 

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

COLETIVO PULSANTE

Difícil encontrar quem me acompanhasse a um passeio ao centro velho da cidade para um show badalado.

Foram muitas as justificativas e negativas. Houve também reticências e até tentativas de me demover da ideia. Outra programação: aniversário, cinema, um lance que vai pintar.

Quase desanimei. Nem era tanto pelo show. Queria mesmo andar pelas ruas, entre os prédios, pelo ambiente antigo. Até que no final da tarde, recebi o telefonema de amiga bem-disposta.

No início da noite, estacionado o carro, descemos na estação da Sé. Tênis confortável, calça jeans, bolsa pequena, quase minúscula. Atravessamos a Sé, passamos pela rua Direita. Em frente ao silêncio da catedral, um palanque com música era acompanhado por um público que dançava e cantava, ou olhava interessado. No Pátio do Colégio, a claridade branca da pequena igreja delineada em azul quase brilhava.

No Largo do Café, entre as ruas São Bento e Três de Dezembro, em vão, procuramos a animação e as mesinhas na calçada que o recorte de um jornal prometia. As ruas estavam desertas e com poucos transeuntes. Seguíamos, levando à frente como escudo, as saudades dessa cidade velha. A pouca iluminação não fazia menores os prédios que nos rodeavam. A mim, tudo assombrava.

Moradores de rua dormindo nas portas dos prédios, em caixas de papelão, cobertores, trapos. Guardas de prédios, uma janela acesa, algum trabalhador de banco fazendo hora extra de trabalho. O comércio fechado, dormindo inacessível.

Assim, sustentando o espírito, atravessamos o Vale do Anhangabaú. O prédio do Correio, as caras de cada coluna. A presença de pessoas nas ruas ia aumentando. Tribos se reuniam nos balcões dos bares. Fui observando os rostos e grupos nas calçadas e avenidas na República. Tipos com muitas tatuagens, com roupas sérias, com tênis ou sandálias, com camisetas e adereços específicos. E vendedores de milhos e de frutas envoltas em chocolate e maçãs do amor. Churrasquinhos, quiosques de caldo de cana e de cachorro quente, acarajé. Diversidade e inclusão no menu. Águas e cervejas nas mãos festejando a noite que seria de chuva. De tudo e muito, para uma longa madrugada de festejo. Porque a vida não é somente trabalho e dor. Ou angústia de ter que viver.

Nos perdemos pela multidão que já se acumulava pulsante. Havia em mim uma ponta de euforia. Eu era uma no meio de toda gente personagem de uma festa. Como se naquele momento, houvesse um elo entre todos. Um significado que me elevava acima da minha pequenez. Ausência e esquecimento de mim mesmo. Um alívio da subjetividade. 

A ansiedade do início estava satisfeita. Um pouco de tudo sobrava nos meus olhos como uma composição de acordes dissonantes e sonantes. Som eloquente sob especial batuta dentro do desacordo de tudo o que eu havia observado. Ruas em parte invadidas por mendigos, praça pública em paz a dançar, pessoas em busca do mesmo destino em que também me perdera, no meio da multidão, na larga boca de cena.

Denso de suor, um transpirar em conjunto, um ritmo das duplas, dos grupos , dos sujeitos, mulheres e homens solitários, tudo formando o caldo coletivo. Torvelinho de muitos risos e palavras soltas, gestos, movimentos muitas vezes desordenados, sempre grandiosos, sinfonia, ópera de uma cidade. De tudo um pouco, ficou dentro de mim.

A amiga? Ela continuou sempre cúmplice nos sustos e nos medos do trajeto, nas descobertas e nas alegrias. Amiga. Testemunha como eu, mas principalmente, personagem da cidade vivida intensamente por nós naquela noite.