quinta-feira, 24 de março de 2016

A ARTE E A EXPERIÊNCIA DO TEATRO

“Vocês trabalham para quê? Eu acredito que
a única finalidade da ciência está em aliviar
a canseira da existência humana.” 
Galileu Brecht

Qual é a relação que existe entre a vida de Galileu, Bertold Brecht e as montagens teatrais da peça desse autor a respeito do cientista? O que é essencial na arte do teatro? Para tentar responder a essa questão, passemos por Galileu, por Brechet e pela experiência do teatro.

O ASTRÔNOMO E O MATEMÁTICO, A CIÊNCIA

Galileu, italiano de Piza nascido em 1564, foi matemático, físico e astrônomo. Mas essa é uma visão sintética do currículo de quem foi entre outras coisas um dos fundadores do método experimental e da ciência moderna. A partir de 1610, com um telescópio já existente aperfeiçoado, ele explora os céus e por cálculos matemáticos consegue prever o movimento dos astros. Assim, comprova a doutrina de Copérnico a respeito do centro do universo: é a Terra que se movimenta e gira em torno do sol. Depois disso sua vida seria ensinar as verdades da ciência e propagar o novo modelo de universo. Mas isso estava em desacordo com os dogmas da Igreja. Era o século XVII e a Contrarreforma instalava os tribunais da Inquisição.

Sob o jugo pesado dos conceitos religiosos, ameaçado de tortura, Galileu nega suas ideias publicamente. Em 1633, é mandado para prisão domiciliar. Nos anos de reclusão até sua morte em 1642, ainda teve tempo para escrever seu importante livro Discorsi (Discursos). 

Dessa vida genial, Brecht fez uma leitura.

O DRAMATURGO E ESCRITOR, A ARTE DE BRECHT

O texto de Bertold Brecht (1898-1956) a respeito de Galileu ganhou mais de uma versão. Ele escrevia a terceira quando morreu. No teatro, esse texto ganhou duas representações: uma em 1968 (Teatro Oficina/SP, com Cláudio Correa e Castro) e outra em 2016 (Teatro Tuca/ SP com Denise Fraga).

Segundo Fernando Peixoto (1937-2012; diretor e ator em 68), nessa época havia uma crise política do significado das teorias novas em conflito com o arcaico (*). Ele continua dizendo que a descoberta do novo entrava em choque com o poder. “Era uma discussão sobre aspectos da ditadura.”

Partindo do mesmo texto, tais representações são iguais? Em essência, sim. Mas por acontecerem em tempos históricos diferentes, cada uma manifesta aspectos particulares cujos significados incorporam dados do contexto em que foram montadas. Além disso expressam preferências do diretor e da equipe que elaborou a montagem em áreas de várias especialidades. São atores, cenógrafos, músicos, iluminador, preparador vocal, figurinista etc. 

O que vai ser posto em cena irá representar a intenção do diretor. Ele rege tudo. No caso da montagem de 2016 foram necessários maquiador, marceneiros e serralheiros por certas escolhas para a encenação. 

Os textos de Brecht sempre trazem à tona questões políticas, o que se repete nas duas representações citadas. Na atual, não faltam alusões às manifestações políticas. A diretora Cibele Forjaz constrói uma personagem perto de nós. Galileu é guloso e ciumento da filha, gosta de mulher, escova os dentes.

Em ambas Galileu representa a angústia humana e o dilema existencial das escolhas e a luta entre a razão e o dogma da fé. 
Então, quando li no ano passado, que haveria outra representação de Galileu, acompanhei nos jornais, nas entrevistas da TV e do rádio. Tinha saudades daquela época em que o teatro chegava a mim acompanhado de entusiasmo. Era uma descoberta da cultura e da arte. Então, percebi que ao longo dos anos, tinha guardado Galileu dentro de mim, nos meus olhos e no meu coração.

Tudo isso faz a grandeza do teatro: o trabalho de equipe sobre um texto magistral que se sustenta ao longo do tempo e que suporta várias leituras. 

Mas, há um aspecto da experiência pessoal junto ao teatro que compete a cada um de nós particularmente. O palco cria um pedaço de realidade especial, como se fosse um pouco mágica. Este aspecto talvez seja o mais essencial de todos.

UMA EXPERIÊNCIA MUITO PARTICULAR

Eu assisti à primeira representação de Galileu em 1968 quando estava na faculdade. Era uma época de turbulência política. Ditadura. 

Em sala de aula, eu estava tendo aulas de teatro com Décio de Almeida Prado. Presenciávamos ao vivo nas encenações de um teatro muito vivo naquela época, o conteúdo sobre o qual ele discorria na sala de aula. 

Há uma sensação boa e uma imagem na memória. Mas era intensa. O ator Cláudio Correa e Castro (1928-2005) como Galileu, sob a luz de um holofote, imenso e solene dizia um discurso. Era um ritual, uma cena que se enchia de significados. Por que motivo tal imagem resiste em minha memória?

Ela me fez reviver o Galileu de 68. O mesmo Galileu que, de acordo com a frase de epígrafe, para sempre nos lembrará que precisamos aliviar a canseira da existência humana. Não terá sido fácil negar suas descobertas para sobreviver. De alguma maneira essa história de Galileu e o contexto daquela experiência de teatro me contaminou. E isso talvez seja o essencial na arte e no teatro. As camadas de sensibilização possíveis, a experiência particular.

No teatro, a encenação nos conduz para uma dimensão fora de nossa vida cotidiana. A representação artística cria outro nível de experiência existencial. Há um drama humano que se desenrola no palco. Artistas incorporam personagens e se movimentam em um cenário. Tudo isso é uma fantasia que vira realidade. E somos convidados a nela acreditar. Vale a pena não contrariar. O essencial é a entrada no mundo da verossimilhança. E extrair de todo esse conjunto o máximo possível. É a arte falando da vida.

Dessa forma, podemos acreditar que Denise Fraga é Galileu, com voz e autoridade masculina. Com uma peruca avermelhada e roupa de época, uma barriga falsa que vai crescendo à medida que a personagem vai envelhecendo, mais uns gestos e caras e, temos Galileu, homem e cientista. 

Este é um relato subjetivo que cabe no tempo de rápida leitura. Mesmo não recordando o significado daquele discurso, ele fecundou cantos de mim com beleza e sedução. Havia um peso naquela voz, uma seriedade naquela roupagem e mistério na iluminação. Reverberação. Tudo conspirou para que minha memória guardasse para sempre essa imagem. 

Foi assim que se organizou uma rede estética: alguns aspectos da vida e obra de Galileu foram manifestados em um texto de Brecht que virou encenação e me tocou. Muitas personagens participaram dessa roda de muita arte. Que possivelmente tocaram muitas outras pessoas como aconteceu com esta singular passagem que me acompanha ao longo do tempo. 

Uma pergunta final. O que Denise Fraga teria a dizer para seu professor Cláudio Correa e Castro que também viveu Galileu? Tendo se exercitado com ele na arte da representação o que eles se diriam se essa conversa fosse possível um dia?


(*) BALBI, Marília. Fernando Peixoto. Em cena aberta. AP: Imprensa Oficial, 2009. p.68




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