No filme "O
Mestre dos gênios" encontramos duas pessoas que se conhecem e se encantam
mutuamente. E depois de um tempo, acabam se desentendendo. Já vimos essa
história antes, não é mesmo? Relacionamentos humanos são teste importante e
instrumento de percepção principalmente de nossas fragilidades. Quando
conseguimos ultrapassá-las, podemos até crescer.
encontros e paixões
A primeira
cena em slow motion focaliza pés,
chapéus e guarda-chuvas, numa sequência cadenciada. Um desfile nova-iorquino
elegante e sinistro ao mesmo tempo. A cor da fotografia é sombria adequada à
época de crise de 1929. A direção de arte e construção de época são primorosas,
o diretor do filme é Michael Grandage.
Enquanto
isso, os pés impacientes do escritor Tomas Wolfe (Jude Law) pisam com força a
água empoçada, querendo furar o chão. Fumando, ele olha para cima onde o editor
Maxwell Perkins (Colin Firth) deve estar avaliando seu texto. A espera é
tortuosa e a água da chuva que deixa seus cabelos ensopados não o incomoda. Ele
habita outra realidade.
Essa
primeira cena nos desenha o temperamento de Tomas Wolfe, exuberante, impulsivo
e até briguento. Um comportamento sem limites e inovador, ao mesmo tempo em que
é sedutor. Com dificuldade de foco e uma inconstância física, com tiques
nervosos difíceis de serem controlados. Ele vai se deparar com a estabilidade
de Perkins, com sua capacidade de disciplina e atenção. Com seu bom senso e
equilíbrio emocional.
Essa radical
diferença de temperamento entre as personagens a princípio não impede a grande
atração que um exerce sobre o outro. O editor percebe de forma íntima e pessoal
a natureza vibrante que o escritor possui. Ele reconhece a força positiva desse
temperamento. Ocorre, então, a cooperação entre as necessidades e
possibilidades dos dois. Tão bem que aparecem até ciúmes na companheira de Tom
(Nicole Kidman). Ela sabe que teria sido de alguma forma substituída pelo
editor na vida de Tom.
Porém, no
convívio há um desgaste que leva ao rompimento. Tom não tem a necessária
introversão para elaborar o que é desequilibrado em sua natureza. O contato vai
se tornando cada vez mais insuportável para os dois.
O
relacionamento desanda. Tom não consegue entender a limitação que Perkins lhe
pede, sugerindo inclusive que ele está errado em sua maneira de viver. Ele se
irrita com o comedimento de Perkins, que por sua vez explode em defesa própria:
“Vivo a vida de forma diferente. ”
Afastam-se.
A afetividade não é suficiente. Por mais que Perkins tenha visto nele a figura
de um filho, Tom com sua natureza rebelde, livre de compromissos, de forma até
infantil e com argumentos irracionais, não se submete às demandas e à
autoridade do editor. E ele precisava tanto da figura de um pai.
Mesmo assim,
ocorre tardiamente a revisão do comportamento de Tom, revelada na carta de
despedida a Perkins. Teria sido essa carta de Tom um alívio para suas possíveis
culpas nesse momento de consciência?
OS GÊNIOS E
A LITERATURA
A tradução
em português do título do filme (O Mestre dos Gênios) privilegia a figura do
escritor. O título Genius em inglês é mais adequado, se pensarmos que as duas
personagens centrais são igualmente geniais em suas funções. Enquanto o livro é criação do escritor, é do
editor a tarefa de colocar bons livros nas mãos dos leitores, sendo assim
esteio para tal talento.
E o contato
entre os dois nos aproxima da paixão de ambos pelo mundo da ficção. Mergulhamos
no mundo da literatura para perceber detalhes na escolha das palavras, na
construção das personagens e na maneira como uma história é contada.
Sabemos
pelas palavras de Perkins que “A história é o que importa, não o número de
palavras”. O impacto de uma descrição deveria ser como um relâmpago. A escolha
das palavras adequadas para conduzir o leitor ao essencial, como um raio,
simples e sem adornos.
Perkins
cuida para que os excessos de estilo de Wolfe sejam eliminados. Simplificar
frases, eliminar senso-comum, moldar o título para expressar a síntese da obra.
Sem retórica, sem digressão. Por sua vez, para Tom, tudo importa: imagens,
adjetivos e sons. É um diálogo entre diferenças. E a partir dela podemos
entender de onde vem a inspiração desse escritor e quais são as dúvidas do
editor, que se divide entre a necessidade de um público e a expressão
espontânea de um talento.
NARRATIVAS
AO PÉ DO FOGO
Mas, uma
cena permanece dentro de mim. Era entardecer e eles visitam o topo do prédio em
que Tom morou ao chegar a Nova York. É uma parada especial para lembranças, em
seu retorno após a viagem à Europa. Ouvimos relatos de experiências de Tom e
reflexões de Perkins. Um conjunto que oferece poder àquele momento.
Perkins vai
longe, a um lugar em que homens ancestrais se reúnem ao redor do fogo para
contar histórias. Um ritual coletivo de narração para afastar o medo. Ou então,
um ritual para dar sentido ao absurdo da experiência humana.
Não seria
essa ainda a função da literatura e das histórias de hoje em dia? Talvez
permaneça vivo ainda entre nós essa força das narrativas, como se a liturgia de
escutar ou falar histórias repetisse um gesto, o mesmo de sempre, de novo e de
novo inaugurado. Ao pé do fogo ou nas palavras lidas em voz alta ou no silêncio
no texto literário. Um momento de poesia e de imaginação necessário à vida.
A história é
o que importa e os personagens falam à alma. E ele e Tom leem e declamam textos,
promovem prazer acordando significados, sendo eles mesmos personagens porque
segundo Tom todos somos personagens.
E nessa
cena, nesse final de dia, na frente da cidade, abraçados pelo mesmo ideal,
frente às luzes da cidade, sob o céu e a amplidão do horizonte, eles reafirmam
seu amor à literatura e à ficção. São nesses instantes eles mesmos personagens de
uma grande história de irmandade entre seres humanos.
PS 1: É difícil viver na cidade de São Paulo. Por outro lado, ela
tem aspectos apaixonantes. Leia o texto e discorde de mim. http://coisasdoimaginario.blogspot.com.br/2016/11/paixao-pelo-centro-ii.html
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