Eu subi
no ônibus e me sentei na primeira cadeira do corredor que encontrei, cansada e
contente por não ter ficado em fila. Havia um senhor de cabelos grisalhos na
janela. Assim que o ônibus saiu, ele começou. “Imenso, este ônibus”, disse.
Concordei. Preferia ficar quieta e levar minha pequena jornada em silêncio, mas
ele ainda falou algo a que não dei atenção.
Ele não
se importou e, poucos segundos depois, continuou puxando assunto.
— Fez quatro anos em março que ele me apareceu da primeira vez. De lá pra cá, mais três vezes. Jesus mudou minha vida.
— Eu não sei ler. Jesus não quis que eu aprendesse. Mais de cem mensagens eu já
entreguei que ele mandou. A Igreja hoje tem às vezes só cinquenta. A senhora é
evangélica?
Ops,
será que ouvi mal? Um exagero. Não, acho que ouvi mal. Mas ele continuou em
várias considerações sobre tamanho de ônibus e população. Logo depois, mudou o
assunto.
Imaginei
que seria mais uma pessoa que se convertera pela força da fé.
“Não
sou.” Se eu fosse, talvez pudesse entender o que é entregar mensagens.
Ele continuou em sua discreta incontinência verbal: “Na terra não podemos
consertar o mundo. Jesus pode. Ele me ensinou. A Bíblia é sagrada.” O cheiro de
guardado do blazer de lã não combinava com os sapatos marrons.
— Não
aprendi a ler porque Jesus não quis. No ano passado o pastor ficou doente e
desenganado. E com as orações ele ficou bom. Sou do Ceará. O povo que vai da
Alemanha para o Japão gasta menos tempo que o que vem do Ceará.
“Não
aprendi a ler porque ele não quis.” Essa frase repetida doeu em mim. Muito.
Talvez tanto como nele próprio.
De
repente, fez-se uma ligação entre eu e aquele desconhecido. Ele não era mais um
cidadão no ônibus, passageiro anônimo da cidade grande. Era companheiro da
triste sina de uma vida difícil, também perdido entre ruas e ônibus. Eu
estava sofrendo por imaginar a situação de um desejo interrompido — ferida
aberta — e sua atitude respeitosa à autoridade: não aprendi porque ele não
quis.
Eu
estava rendida à solidariedade humana através de uma dor. Era um drama de
alguém que se perguntava algumas coisas, mas não todas. Procurava comunicação e
expressão para as aflições de sua alma curiosa. Alívio para sua insatisfação,
cobertura de uma defasagem entre sua expectativa e a realidade. Não podia dar
muita continuidade a seus pensamentos renitentes. Ele poderia se perguntar: por
quê? Mas, não. Parava antes das possibilidades, numa espécie de aceitação,
loucura mansa. Delírio?
Ele não
se dava o direito de questionar por que papo de ônibus é assim. Eu não queria
conversa. mesmo assim, o encontro aconteceu, em meio à corrida do dia-a-dia, me
apresentando o ser humano em sua tragédia. Trágico era ele querer ler e não
poder investir contra o que no seu imaginário — a autoridade máxima da
hierarquia de sua religião — o impedia de ler. Dentro dele não havia espaço
para nada diferente disso. E se ... quem sabe? Uma revolta, um questionamento.
Um gesto de energia. Uma pedra na mão. Nada. Havia uma parede enorme de
inconsciência entre ele e a realidade. Injustiças de um mundo mau. Um
desperdício. Um analfabeto funcional em tudo na vida. Um quase. Um projeto mal
acabado. Tão desajeitado. É assim.
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