Ana Maria M. González
Tive oportunidade de assistir no festival Ciranda de Filmes (Maio2017 SP) a um documentário que tratava de cadernetas de receitas culinárias elaboradas em campos de concentração. Como assim?, eu me perguntei, quando li a síntese do filme que tinha por título BANQUETES IMAGINÁRIOS. Muito longe de ser ironia, esse documentário me conduziu a descobertas maravilhosas a respeito da capacidade que o ser humano tem de superar um estado de caos e de absurdidade.
Tive oportunidade de assistir no festival Ciranda de Filmes (Maio2017 SP) a um documentário que tratava de cadernetas de receitas culinárias elaboradas em campos de concentração. Como assim?, eu me perguntei, quando li a síntese do filme que tinha por título BANQUETES IMAGINÁRIOS. Muito longe de ser ironia, esse documentário me conduziu a descobertas maravilhosas a respeito da capacidade que o ser humano tem de superar um estado de caos e de absurdidade.
O COMEÇO DE TUDO
Tudo começou quando a jornalista e cineasta francesa Anne
Georget (1962) entrou em contato com a história de Anny Stern que recebeu no
começo dos anos 70 um pacote contendo cartas, fotos, e sobretudo uma caderneta
de receitas culinárias de sua mãe, MinnaPächter, falecida em 1944 no campo de
Terezin. O pacote foi-lhe passado por um desconhecido. As páginas da caderneta
eram delicadas e costuradas de forma frágil. Foram necessários cerca de 25 anos
para que essas relíquias chegassem a seu destino.
Impressionada por tal história, a jornalista foi atrás de
mais dados, tendo inclusive se encontrado com o neto de Minna nos EUA , David
Stern. Escreveu, então, com ElsieHerberstein um livro a respeito do assunto, Lescarnets
de Minna, nas ÉditionsduSeuil. E fez um primeiro documentário.
A divulgação desses trabalhos gerou fatos inesperados,
abrindo espaço para outras descobertas que se mostraram mais surpreendentes
ainda.
Segundo as palavras da jornalista, em janeiro de 2009, ela
recebe uma carta de Emile Letertre, que tendo lido seu livro sobre as receitas
de Minna, resolveu lhe contar acerca de 470 receitas de cozinha escritas por
seu pai Marcel, morto em campo de concentração. De novo, ela entrava em contato
com essa estranha união entre campos de concentração e cadernos de receitas. E,
desta vez, com o registro feito por homens, o que também era pouco provável.
O gosto pela gastronomia na Europa seria o dado que
justificasse esses cadernos de receitas nesses grupos? Esse argumento não se
sustentou porque logo apareceram relatos de outros cadernos em gulags russos
(campos de trabalhos forçados dos presos políticos) e em prisões de guerra no
Japão. O sargento Stewart que Anne Georget encontrou no Alabama (EUA) e
permaneceu por três anos e meio em Kawasaki, perto de Tokyo, fez cadernos com
listas de sopas, de legumes, de sobremesas, de bombons, de pães. No conjunto
que se foi formando dessas cadernetas estão presentes receitas de regiões
diferentes, de família, especiais para festas religiosas e sociais, de tudo o
que socialmente vivemos à volta da mesa de refeições.
O desenvolvimento natural desse trabalho de muitas
descobertas de Anne Goerget a conduziu a outro documentário. Foi esse segundo
filme que me moveu a ir buscar coisas na internet e a escrever este artigo.
Esse segundo filme é mais completo e com depoimentos de profissionais de várias
áreas: chefes de cozinha, historiadores, neurocientistas, filólogos, linguistas
e etnólogos. Todos se esforçando na tentativa de abarcar com suas análises e
interpretações as prováveis explicações para o fenômeno. Delicado e instigante.
Por que uma literatura desse tipo em situação de guerra e
aprisionamento?, se pergunta a pesquisadora. Por que motivo essa ação de
memória e de recolha em um contexto de tanto sofrimento por fome? Lembrar
receitas é, sem dúvida, coisa que todos podem fazer sem necessidade de formação
profissional especial. É um evento universal para homens e mulheres, de todas
as idades, de todas as regiões e culturas. Todos temos memórias de comidas, de
comemorações à volta da mesa de refeições. Mas, há mais, muito mais atrás desse
mistério.
Sustentando o absurdo e o caos
Ao longo dos anos, desde a primeira notícia dos cadernos de
Minna, a pesquisadora foi descobrindo outros dados o que tornou tais cadernos
objeto de mais amplos questionamentos. Era um fenômeno que se repetia em vários
locais e com pessoas de várias culturas e idades. Disse a jornalista: “Entendi que este era um fenômeno que
precisava ser explicado melhor: em face da aniquilação,
o homem retém tudo aquilo que o define. ”
Enquanto eu acompanhava tais explicações ia também
procurando sair do estado de pasmo em que estava. Aturdida, chocada, o que
mais? Nunca saberemos como é estar em uma prisão de guerra ou em um campo de
concentração em um estado de fome imensa e sem esperança de vida, em condições
terríveis, por serem locais especialmente preparados para a morte.
Mesmo assim, houve grupos que se juntaram para tentar
sobreviver a esses horrores a partir de momentos de partilha em vários cantos
do mundo.
No contexto de absurdidades dos campos de concentração, as
receitas talvez lembrassem uma possibilidade de paz, de organização ou de
sequência ordenadora. Talvez também trouxessem um pouco de liberdade em
contextos de aprisionamento em geral.
No documentário, uma voz sussurrada vai lendo os nomes das
receitas doces e salgadas e seus ingredientes, temperos e detalhes culinários
populares ou sofisticados. Na verdade, cada palavra representando um segredo
para a manutenção da vida. Vozes baixas em comunicação proibida ditavam as
receitas para todos de um grupo capenga, manco, imprestável fisicamente, mas
teimoso, insistente muito vivo e atento se segurando uns aos outros para o
básico e essencial.
O que mais há de haver? Deve haver mais. Talvez um sistema
que na natureza humana vai além de nossa capacidade racional e mental de
compreensão, dentro dos campos do imaginário e do simbólico a que só temos
acesso quando nos abrimos para ele em condições especiais. Acionando talvez
processos bioquímicos do cérebro como diz Antônio Damásio? Sim, mas tais
explicações científicas ainda são palavras. Difícil acreditar. Impossível saber
como. Estamos lidando com possíveis depositários de nutrição para o espírito e
até para o corpo, canais desconhecidos para nós até o momento em que precisemos
deles.
Não podemos determinar cientificamente a extensão do
desespero causado pela fome. Nem o inalcançável poder da imaginação como
possibilidade de superação no empenho pela sobrevivência. Os grupos se juntam
para o essencial reproduzindo tal busca em cadernos de receitas, o que segundo
as palavras de Anne Goerget, retém, face à aniquilação, o que os define. A
comida, a força do grupo, os olhos nos olhos? Ignoramos o que está oculto nessa
mobilização de recursos humanos para a vida. Um mistério insolúvel.
Vivo uma sensação de pequenez e de ignorância perante estes
fatos. Por mais que eu elabore estas
ideias, abrindo bastante o leque de vazios possíveis para que possam nele caber
o que eu não sei, minha admiração por estes banquetes imaginários não diminui.
Experiência que comporta um misto de sentimentos que vão de dor, sofrimento e
até uma estranha beleza. Um encontro justo em relação à grandeza insondável da
natureza humana.
PS: Para escrever este artigo levei em conta as informações
do filme Banquetes Imaginários, pesquisas na internet e a palestra TED La
Rochelle de Anne Georget , cujo link passo em seguida:https://www.youtube.com/watch?v=qjQmctQPjeI
seus animais tudo mentir
ResponderExcluirmentira
Excluirso fala sobre uma velha que achou um livrinho
ResponderExcluirfforem passear em vez de tentar enganar gente professores e alunos
ResponderExcluirstau
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