segunda-feira, 5 de março de 2018

O INSULTO, OU A INVASÃO BÁRBARA DAS EMOÇÕES


Ana Maria M. González

Este artigo tratará de um filme que se passa em Beirute, em contexto social complexo. Engana-se, porém, quem julgar precipitadamente que a difícil situação político-religiosa local justifica tudo o que vem depois de um insulto, um pequeno fato. A elaboração do tema da ofensa verbal adquire complexidades nas mãos talentosas do diretor. Ele nos oferece mais para pensar do que uma explicação simplesmente óbvia. São muitos os mistérios da natureza humana.  

                                                 
UM INSULTO APENAS

Como um ataque verbal pode tomar proporções imensas a ponto de mexer com a opinião pública de um país? Esse é a linha principal do filme O INSULTO, indicado ao prêmio de melhor filme estrangeiro. A direção do filme é de Ziad Doueiri (1963), libanês que estudou nos EUA e vive na França atualmente. Ele tem na bagagem o trabalho de assistente de câmera junto a Quentin Tarantino em alguns filmes , entre os quais
 Pulp Fiction.
 
Toni (Adel Karam) é um cristão libanês que, regando suas plantas na varanda, molha o palestino refugiado Yasser Abdallah Salameh (Kamel El Basha) engenheiro responsável por uma obra no bairro em que Toni mora. O engenheiro por conta de sua responsabilidade faz a instalação do cano que resolve o problema sem o consentimento de Toni, que reage com muita raiva. Quebrar o cano a marteladas é apenas o começo de uma série de atitudes temperamentais que crescem fora de qualquer lógica. Às marteladas, segue-se um xingamento de Yasser. Está montado o circo. Um xingamento, uma humilhação, agressão física e em crescente complicação, uma questão judicial, mais aspectos de problemas políticos e religiosos, descobertas de segredos pessoais. Em intensa fermentação, com a presença da mídia e de autoridades, o povo da cidade se envolve, contra e a favor. Quem tem razão?
                                               
A INVASÃO BÁRBARA
Quando eu escolhi assistir a esse filme, fui preparada para as questões políticas e religiosas, características daquela região do Oriente Médio. Guerras, disputas, mistura de sacro e profano. Puro preconceito meu, claro. Ideias à priori, que eu estava trazendo dentro de mim.

Felizmente, a narrativa foi se ampliando para além das minhas preconcepções e desfazendo tais ideias, me surpreendendo. As ações foram se acumulando em ritmo de cortes rápidos e desenhando dois contextos, um externo e relacionado ao coletivo e social, e outro subjetivo e relativo às personagens masculinas, protagonistas e opostas.
Elas são foco e presença em constante confronto de posturas, de temperamento e de ideias. Cada um com suas histórias e preferências. Aos poucos, conhecemos suas histórias particulares, a partir da interferência dos argumentos dos advogados. Essa abertura para informações da vida de cada um deles, justificaria seus comportamentos? Justificar para então avaliar ? Não me parece ser assim que funciona o sistema judicial.

Cresce o burburinho, crescem opiniões ligadas à ideologia e situação social de cada um: minoria cristã e
 palestinos refugiados. Em uma região em que a guerra está no ar, mais dados são adicionados para conspirar contra a solução do problema. Aumentando a confusão deste cenário coletivo, surge a questão dos judeus e do sionismo.

O que era no começo uma questão de calha ilegal de uma varanda e de um xingamento pessoal, ao final da narrativa, tinha alcançado proporções de um tribunal com cobertura midiática e repercussão em toda a nação. A interferência de autoridades e das mulheres de cada um, todos em tentativa de apaziguamento. Em vão. Posições irredutíveis mantidas. 

Desde o início, observamos as emoções dominando as decisões pessoais de um e outro. Uma falta de lógica que conduz ao crescente absurdo, que beira o irracional. Não é inútil a discussão a respeito da natureza humana em meio às intervenções apresentadas pelos advogados no tribunal. Essa invasão de argumentos que têm caráter emocional é maior do que o fato detonador em si, que foi atropelado por outras questões mais amplas não por acaso ligadas à natureza humana.

As emoções são oportunistas e embarcam nas ideologias religiosas ou políticas. Pegam carona. Assim Toni parece jogar sua raiva e indignação por um fato da infância, contra uma pessoa que representaria um oponente capaz de receber tal culpa. Esse exagero de raiva e agressividade se contrapõe ao controle e silêncio resiliente de Yasser.

Há guinadas de expectativa no tribunal. E o acirramento da postura da população não diminui. Esse descontrole, talvez seja a expressão daquela parte da natureza humana que é bárbara e que torna difícil a resolução das disputas. Aquela que se aproxima do cérebro reptiliano e da irracionalidade. Nesses casos não há lugar para diálogo, nem para clareza de argumentos. A agressividade e o confronto corporal são a linguagem possível nessa guerra.
Orgulho e agressividade, paixões e raiva consumiram Toni e Yasser. E invadem a população fora do tribunal. Essa barbárie que é coletiva, começa dentro de cada um, tem um respaldo subjetivo que é alimentado pelo comportamento social do grupo. É no escondido de nossas emoções que ela prolifera. Um descuido, e pronto! Exteriorizada sai do controle.

Ao final do julgamento os olhares desses dois homens se encontram de forma diferente. Aceitam que sua querela terminou? Toni sentindo--se absolvido por suas memórias , pode olhar seu oponente, de forma diferente? Yasser, em sua observação muda (orgulhosa?) sente que se fez a justiça? Fez-se uma paz, enfim?  

Sim, a natureza humana é cheia de sutilezas. Merece ser elaborada e não no tempo de um julgamento. O diretor aponta para a sua complexidade. Ela é a mesma para todos, minorias cristãs e palestinos refugiados, que antes de serem grupos são coleção de indivíduos.

Somos todos iguais. A vida é igual para todos. Difícil. Não nos enganemos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário