quinta-feira, 5 de novembro de 2015

INUMERÁVEL MÁRIO, A OBRA E O HOMEM

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Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...

Ouvi recentemente que Mário de Andrade é polígrafo, ou seja, seus múltiplos interesses se distribuíram em uma obra imensa. Em geral, dela apenas conhecemos a poesia vanguardista de Paulicéia Desvairada e a prosa nada convencional de Macunaíma. Mas ele é mais do que esse intelectual interessante e genial participante do grupo modernista de 1922. O que você conhece dele? Acompanhe-me e, como eu, apaixone-se.

MÁRIO DE ANDRADE, HOMEM DE MUITOS TALENTO

Ele foi poeta, romancista, crítico, professor e pesquisador de música, de folclore, de filosofia, de arte em geral. Este ano houve muitas homenagens, publicações e palestras, tudo para nos lembrar de sua importância aos 70 anos de sua morte. Tenho conhecido outros aspectos de sua obra e tomei contato também com o homem, suas preocupações, anseios e valores.

Na busca por informações eu soube de seu processo criativo nos textos, a partir de anotações e ideias criteriosamente organizadas e planejadas. Também conheci o professor de música que escreveu o Ensaio sobre a Música Brasileira, essencial para a criação do musicólogo brasileiro.

Ele efetuou pesquisas nos anos de 1927 e 1928, em viagens etnográficas ao Norte e Nordeste para coletar material de cultura popular e de folclore, porque era empenhado em conhecer a cultura nacional e em preservar a memória dela.
De 1935 a 37 foi gestor do Departamento Cultural na cidade de São Paulo, tempo em que construiu bibliotecas, os parques infantis, a rádio escola, o primeiro curso de biblioteconomia do país e concebeu a Sociedade e do Curso de Etnografia. Seu projeto era ambicioso e abrangia uma percepção de educação total, civilizatória, começando na cidade, com pretensões de se estender para o Estado e até para o País. Nessa função colocou toda sua vocação de intelectual, de escritor e de músico. Mas seus desejos de formação de uma cultura musical a ser espalhada por professores em todo o país, para além de virtuosismos não puderam ser efetivados. A grandeza de seu projeto não garantiu sua permanência e ele foi substituído no cargo.

mario_de_andrade_5_abr15.jpgDepois disso ainda foi para o Rio de Janeiro (julho de 1938) a convite de amigos para aulas e para um cargo público. Mas, depois de uma temporada difícil, decidiu voltar a São Paulo em fevereiro de 1941.
 
Não era fácil desenvolver seus projetos. Segundo o biógrafo Eduardo Jardim, o projeto de Mário de Andrade levou em conta a necessidade de integrar ao corpo da nação seus múltiplos componentes : eruditos e populares, urbanos e rurais, tradicionais e modernos, autóctones e alienígenas. Eram assim amplos seus anseios.

Conheci também a importância de sua correspondência, que é um conjunto de mais de 7000 cartas que ele trocou com pessoas de muitas áreas. Mário de Andrade entendia a correspondência pessoal como documento e testemunho histórico. Este conjunto e as anotações frequentes também desenham seu ideário intelectual e pessoal. Produzia e refletia sobre a criação da obra.

A coleção de suas cartas, assim como todo o arquivo pessoal de Mário de Andrade está guardado no Instituto de Estudos Brasileiros (USP), e consta de 30 000 documentos aproximadamente, 17 mil livros e uma significativa coleção de obras de arte A preservação é realizada de acordo com critérios internacionais e conta com tecnologia avançada. São cerca de 450 caixas que recebem tratamento técnico especial. Uma equipe desenvolve estudos consistentes sobre esse material.

Faleceu em fevereiro de 1945 de ataque cardíaco.

GRANDALHÃO E GENEROSO

Como era a pessoa que construiu esta obra e carreira? Talvez seja uma curiosidade boba. Mas não me satisfaço com a descrição ou a compreensão de sua obra. Não que eu queira desmistificar o ídolo. Pelo contrário, quero trazer o realizador para mais perto da vida cotidiana, aquela que cabe a todos nós sem exceção. Quero conhecer o homem que fez tanto em tão pouco tempo de vida. Sua morte precoce me faz querer saber mais, talvez na tentativa de justificá-la.
Ele não era uma pessoa simples. Era sofisticado. Usava água de cheiro, robe de seda azul em casa; ternos de linho e cambraia, sapatos alinhados. Às vezes, ousava nas gravatas. Tinha uma de cor amarelo canário.

Quando criança, era dispersivo e não foi bom aluno na escola embora gostasse de português. Era religioso e ligado aos parentes e à casa. Grande companheiro da mãe. Fumava muito e tinha cerca de trinta cinzeiros porque detestava derrubar cinza no chão.

Tinha amores platônicos, presentes nas cartas, na poesia e na ficção. Sua sexualidade também foi tema este ano pela abertura de uma carta pessoal, que na verdade não revelou nada para desconcerto de muitas pessoas. Só reforçou seu temperamento discreto e sua conhecida elegância também no trato desse assunto que, segundo ele, só a ele mesmo interessaria. Mário, sensível e cordial rompeu a amizade e parceria com Oswald de Andrade por causa das brincadeiras ferinas nas tiradas verbais do amigo. Era frequentador de rodas literárias e da vida boemia.

Seu sorriso era generoso. Brincalhão, entre os amigos tinha a fama de exagerado. Na família era tido como amalucado, pois, como alguém em sã consciência poderia levar para uma casa católica uma escultura de Cristo de trancinhas? A escultura era de Victor Brecheret e fazia parte das novidades da época que não eram aceitas tão facilmente por uma cidade provinciana que ainda não tinha amadurecido culturalmente para as inovações artísticas que já despertavam pelas cidades da Europa. O termo futurista tinha algo de pejorativo naquela época. Daí, ser ovelha negra na família.

Com disposição incansável, ele era leitor do que ocorria no mundo daquela época. Recebia a correspondência da Europa e era assinante da revista francesa de vanguarda L´Esprit Nouveau, concebida por Le Corbusier e Amédée Ozenfant. Nessa revista todas as artes apareciam ligadas ao urbanismo. Dessa forma, diversificou seu talento de erudito e dominou diversos ramos do saber. Para dar conta dessa curiosidade incansável, dormia não mais do que quatro horas por noite.

Havia formalidade no social e informalidade nas cartas, local de confissões e compartilhamentos com amigos sobre textos e projetos.

Nelas ele dispersou suas constantes tensões internas, aliviadas no exercício da literatura. Em carta a Henriqueta Lisboa em 1943, Mário diz que /.../ escrevendo eu parece que consigo penetrar mais fundo em mim. A escrita visual me obriga a uma lógica inflexível, pelo menos mais nítida.

Uma de suas grandes tristezas, ainda maior do que a perda do irmão quando bem jovem, talvez tenha sido não ter conseguido realizar seu projeto no departamento de cultura em que colocara todos os seus ideais. Fico me perguntando a respeito disso, sem certezas nessa avaliação.

Figura importante na vida cultural brasileira entre 1917 e 1937, Mário de Andrade na avaliação do modernismo concorda queTer-lhe-ia faltado um espírito de ´maior revolta contra a vida como está´. Na verdade, Mário é consciente a respeito do limite a ele imposto.

Em outra carta para o amigo Manu, o poeta Manuel Bandeira, ele confessa: Eu amo a morte que acaba tudo. O que não acaba é a alma.... Sua sensibilidade teria sustentado mal as inadequações e os embates da vida material.

Na apresentação da biografia de Eduardo Jardim, há uma síntese da figura de Mário na vida cultural brasileira: uma estética própria e a prática de interpretação do Brasil com papel de intervenção na vida cultural.


Mas pode ser também o escritor e inspirador nos terrenos da educação e da cultura como elementos de transformação social. Ou ainda, simplesmente um homem sensível , um poeta, um escritor, que teve um percurso biográfico incrível. Múltiplo. Inumerável.

Não sou daqui venho de outros destinosNão sou mais eu nunca fui eu decertoAos pedaços me vim eu caio!

PS1: As informações deste texto foram basicamente coletadas nas quatro palestras  realizadas no Centro Universitário Maria Antônia em junho de 2015, pela equipe do IEB/USP, nas que foram realizadas a respeito dele na Flip deste ano e na leitura dos livros abaixo mencionados. Em tempo: há também alguns indícios leves, porque eu poupei você, meu leitor- da paixão que permanece comigo desde a época da formação acadêmica e que só tem aumentado ao longo das décadas.
Mário de Andrade visto por seus contemporâneos (org pelo Editor) Eu sou trezentos, eu sou trezentos e cincoenta, RJ: Agir, 2008.JARDIM, EduardoMário de Andrade:Eu sou trezentos, vida e obra. RJ: Edições de Janeiro, 2015.

PS2: Visite o site do IEB que mantém, entre outros, o arquivo de Mário de Andrade.  http://www.ieb.usp.br/arquivo


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