O
artista plástico Bartolomeo Gelpi,
em palestra a respeito do filme A Grande Beleza de Paolo Sorrentino, disse ter
saído do cinema com a impressão de que havia visto uma obra prima. Guardei o mote sugerido por esse depoimento.
Sem pretensões de concluir o assunto, convido você a responder à pergunta antes
de ler o texto abaixo: por que esse filme seria uma obra-prima? E esse filme ainda
nos incita a outra questão. Pelas entrevistas do diretor e pela observação,
podemos estabelecer uma relação desse filme com La Dolce Vita de Fellini. Como
e a partir de que dados?
O começo, o BÁSICO
A
relação entre os dois filmes pode se alongar por vários aspectos, mas ela
começa na parecença entre os dois protagonistas e no amor pela cidade de Roma.
Paolo Sorrentino (2013) parece ter cunhado sua personagem Jep Gambardella, à
luz de Marcelo de Fellini (1960). Ambas
sofrem de mal parecido, de uma insatisfação mansa. Uma mesma profissão lhes
oferece um trânsito fácil pela alta sociedade italiana entregue a noitadas, em
meio a decadência e alienação moral, imersa em vazio e relações fúteis. Os dois
parecem apenas acomodados com essa opção de vida.
Notamos
também o mesmo amor pela cidade que explode na tela generosamente em toda a grandeza de sua arte. Poderíamos até afirmar que Roma divide o
protagonismo dos filmes com as personagens. Há outros aspectos que mereceriam
atenção como a forte presença da Igreja e a crítica à sociedade italiana em
ambos; e ainda outros dependentes do contexto de cada uma das fases históricas
dessas encenações separadas entre si por mais de cinquenta anos. Mas há mais.
Buscas
Os
dois personagens demonstram uma inquietação que acaba gerando buscas
pessoais. A de Marcelo poderia ter sido
desenvolvida a partir do contato com um amigo, a quem ele pede ajuda, por
acreditar que ele possui o segredo de ser feliz.
Em um diálogo a respeito de um quadro de Giorgio Morandi, (pintor
italiano, 1890-1964) o amigo Steiner, conversando com ele, diz que “Em uma arte
nada ocorre por acaso.” E continua assim, “Deveríamos nos libertar de paixões e
sentimentos na harmonia da obra de Arte realizada. Naquela ordem encantada, conseguiríamos
nos amar tanto e vivermos soltos, além do tempo. Soltos.
Soltos.”

Por
sua vez, Jep faz sua caminhada elegante até que a morte de seu primeiro amor o
move a uma perspectiva diferente das coisas. Apresenta então sinais de mudança
e até um anseio de cunho religioso ou espiritual, que se demonstra inútil tendo
em vista a fragilidade da pessoa da Igreja a quem ele dirigiu sua dúvida.
O
primeiro acaba sua trajetória em uma praia com um grupo após uma noitada, nada
tendo mudado para ele. Mas, para Jep se não houve resposta à dúvida espiritual,
ainda sobra uma promessa de renovação. Há no ar um sorriso final e uma possibilidade
de retomada de sua vocação.
Seria
fácil, precipitada e até destemida a conclusão de que Fellini tem uma visão
pessimista da existência. Talvez sim. Mas seria irresponsável concluir assim
tão ligeiramente. Uma análise mais completa poderia explicar detalhes da
questão, o que não cabe neste momento.
Seria
também difícil definir um motivo que fosse conclusivo para as mudanças de Jep e
de sua decisão final. Observamos sinais dos efeitos dessa mudança a partir de
suas palavras. À pergunta “ Por que não mais escreveu
um livro?” ele responde: “Por não ter encontrado a grande beleza”. Preferiu
permanecer mudo. Mas sabendo-se vocacionado à sensibilidade, essa postura não
deve ter ser fácil, também por estar em contato contínuo com expressões
múltiplas da arte. Ter mudado a decisão, propondo-se possivelmente a retomar sua vocação, será um índice de que
encontrou a grande beleza?
OBRA-PRIMA
A questão
estética perpassa sutilmente os dois filmes, como se pensar a vida junto da
experiência da arte possibilitasse o alargamento do horizonte, para além da
futilidade alienante e de uma vida que aprisiona. Para
Marcelo a harmonia através da arte, que seria promessa de felicidade, tornou-se
impossível. A obra de Fellini ainda é atual após cerca de cinquenta anos e guarda
características de uma obra prima. Mas o destino de sua personagem é fraudado e
ele se distrai de sua busca. Não há salvação para
Marcelo.
Jep tem sorte
diferente. A visão de um navio naufragado após a morte de Ramona e uma série de
acontecimentos na vida das pessoas a sua volta, tudo isso talvez lhe tenha
indicado a necessidade de uma resolução pessoal.
Nada é
explícito. Há um namoro com o imponderável em ruptura com a lógica, um conluio com
a imaginação. A estranheza vai abrindo campo para nova interpretação.
Ler nas entrelinhas é essencial. E a arte é o veículo para desvendar esse
percurso.
Jep
talvez perceba alternativas para a grande beleza que não chegou a encontrar. Pontualmente,
para ele há outras possibilidades nas aberturas de sua fantasia netuniana. Um teto que se abre em mar, uma revoada de pássaros ao
sopro da santidade, uma freirinha que brinca com crianças ou colhe frutos, uma
coleção de chaves que abrem tesouros.
São
vestígios do belo misturados às percepções do dia-a-dia. São sinais que se
espalham por tudo e que podem ser alívio para a devastação de uma vida sem
sentido invadida por um palavrório mundano e frívolo. Algo maior acontece
quando ele anda reflexivo pelo cais do rio ou contempla pequenos gestos, como a
cena de beijo entre namorados ou as formas das esculturas e as luzes-sombras de
pinturas. A reflexão cria, desenha sentido, constrói corpo e alma. Nessa
experiência concreta há incorporação de um valor ou de uma essência intemporal
porque gera contato e harmonia.

A sensibilidade de Jep talvez tenha conservado em latência sua
busca pela grande beleza. Essa ausência foi mantida em aberto. Até que algo o
impulsionou à frente. E talvez ele tenha encontrado a resposta em cada momento
do belo possível, seja quando cada chave
chega à porta correta ou quando a girafa desaparece porque é assim que o mágico
deseja. Eis um átimo de magia. Eis aí uma expressão da grande beleza.
Jep encontrou. E nós também encontramos em todo esse conjunto uma
obra-prima porque há nela a grande beleza e a essência do intemporal.
(*) Palestra realizada na Casa do
Saber em São Paulo, em março de 2014, com o artista plástico Bartolomeo Gelpi e o musicólogo e jornalista Zuza Homem de Mello.
PS 1: Resenha de Veríssimo a
respeito do filme A Grande Beleza. http://oglobo.globo.com/opiniao/a-beleza-maior-11375771
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