Ana Maria M. González
SERÁ UM FAROESTE?
Podemos até pensar que esse filme é uma espécie de faroeste por inúmeros aspectos. Na verdade, sem tiros e sem mocinha. Mas temos botas, chapéu surrado e saloon com prostituta. A (linda) sonoplastia traz gaita, claro! Talvez seja uma homenagem ao estilo. Mas, principalmente, assistimos a uma reflexão a respeito dos significados das palavras, da amizade, da vida e da morte, da capacidade de transformações em nossas vidas. E do poder de um sorriso.
O VELHO LUCKY
Lucky (2017), dirigido por John Carroll Lynch, tem Harry Dean Stanton (Paris, Texas) como protagonista e, entre outros, David Lynch (normalmente mais discreto) em papel memorável.
O filme mostra a rotina do dia-a-dia de Lucky, um ateu ranzinza e de pouca fala, ex-soldado da Segunda Guerra. Seu despertar e ligar o rádio, a higiene pessoal, a ginástica. Seus cuidados com a aparência e caminhadas pela cidade. Palavras cruzadas e café. Assistir à TV para programas de jogos com auditório. Falar ao telefone vermelho.
Uma vida organizada e que se desenrola tranquilamente até que um dia ele cai ao chão. Desmaio? O médico depois de exames lhe dá o diagnóstico: Velhice. “Não vou lhe proibir o cigarro , o que isso sim, poderá lhe fazer mal”.
Um tanto desconsolado, o caubói volta à sua rotina. Mas algo aconteceu. Uma crise se instalou.
Continua fazendo suas longas caminhadas até a vila e fumando muito em todos os lugares. Em todos não. Há uma casa noturna que o teria expulsado, por ter acendido um cigarro!, visto que é proibido. Será verdade? Segundo Lucky, não é essa a verdade.
PALAVRAS CRUZADAS
Ele anda até a cafeteria e senta para um café e palavras cruzadas. Envolve os conhecidos em seu jogo, pensando as palavras, procurando seu significado. Tem em sua casa em local apropriado um dicionário para consultas.
Realismo é uma coisa?, ele pergunta. A resposta vem: “Sim, é aceitar a situação como ela é e lidar com ela de modo adequado”. Questionar as palavras é um exercício aplicado às experiências de vida.
À noite, no bar, toma seu Bloody Mary e troca ideias. E esse universo limitado é vivido assim de forma simples e inteligente, entre velhos amigos participando de seus importantes diálogos.
A Elaine, dona do saloon, ops! do bar, conta como passou a ser respeitada em um mundo de homens. Howard conta como foi afetado pelo animal de estimação (um cágado).
Em outros momentos, outros diálogos. O soldado no restaurante relata uma cena de guerra contundente em que ele se depara uma criança que lhe trouxe uma verdade da vida em forma de pura alegria. E Lucky nos confessa a maior tristeza de sua vida, que foi a morte de um rouxinol, por sua responsabilidade, que parou o canto e fez “baixar o silêncio no mundo. Foi devastador ”. São todos diálogos essenciais em relação a essas personagens.
HOMEM AFORTUNADO
Vamos nos afeiçoando a esse homem comprido, magro e de poucas falas, já que para ele “o silencio é melhor do que conversa mole” .
E a personagem vai se revelando aos poucos. Parece tratar-se de um homem duro, que não foge de uma briga e gosta de quebrar regras. Na verdade, o quadro que temos dele é mais complexo do que qualquer descrição didática. Sendo cético, ao cair no chão em desmaio, geme “Jesus Cristo”!
E ele vai se abrindo a uma gama de emoções que passa pela confissão de medo (da morte?). E ainda por outra que traz a lembrança triste de sua infância. Há necessidade de revelar essa dor (e culpa?) para se safar dessa memória incômoda, angústia. Há um descongelamento em curso nesse caubói.
Até que, em festa de aniversário, ele canta de improviso uma canção de amor, em espanhol junto dos mariachis. Teria ele se lembrado de uma mulher, de uma história de sua vida?
E outros acontecimentos vão se juntando nesse filme que é lento mas, que tem vários níveis de acontecimentos, de silêncios e de emoção.
Não podemos medir o tamanho das mudanças que ocorreram dentro dele a partir da crise pós desmaio. Mas, podemos identificar sinais, delicadezas como o canto na festa falando de amor. Ou quando ele olha para dentro do tubo que é a entrada do espaço noturno Eve´s, e enfim, a câmera nos mostra o que tem dentro. Um cenário verde, de águas e cantos de pássaros. Como se, agora ele pudesse olhar esse pedaço de paraíso perdido sem o amaldiçoar com xingamento.
A câmera abre alguns segredos e guarda outros. Se podemos ter a perspectiva da entrada da casa noturna, não ficamos sabendo quem é a parceria do telefone vermelho. Da mesma forma, somente nós ficamos sabendo que o cágado está bem perto dali, enquanto seu dono passa por estágios de sofrimento variados até que aceita a perda e a solidão. Estratégias do diretor e do roteirista. Detalhes de um grande filme.
Nos instantes finais, Lucky pára em frente ao pé de cactos e nos dá um sorriso que alivia e amansa a rudeza de sua face. Um sorriso que nos lembra a história da criança que sorri para o destino a partir de sua alma. Pura alegria.
Por que ele seria um afortunado? Pelo trabalho na cozinha de um navio na Segunda Guerra? Pela maneira de viver? Pela aceitação do realismo na vida? Por isso tudo?
Enquanto isso o cágado está bem perto, naquele cenário agreste e seco. Andando no sentido inverso daquele do início do filme. Ele abriu e agora fecha a narrativa. Nada mais justo, surpreendente e correto.
É o momento do nosso sorriso.
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