E
ela veio por indicação de uma amiga. Um psicólogo, amigo seu, tinha períodos
livres no seu espaço. Coisas cruzadas, coisas boas. Eu ficaria com as
sextas-feiras e as manhãs dos outros dias da semana. A sala era pequena, no
piso de cima, ao fundo do corredor comprido.
Tratava-se
de um consultório em uma casa grande de dois pisos e uma edícula no fundo do
terreno. Lá cabiam uma clínica médica e odontológica, fonoaudiólogas, psicólogas,
professora de inglês e esteticista. Cheguei me sentindo, a princípio, estranha
num ninho que não era o meu. Fiquei nessa casa, que ganhou significados na
minha história profissional, por cerca de quatro anos, que foram importantes por
muitos motivos, mas principalmente para o estabelecimento de uma rotina de
atendimento.
Cerca
de um ano depois de estar nesse espaço cedido parcialmente, tive um momento
especial quando surgiu a oportunidade de ter uma sala só minha. Ela era mais
ampla e ficava no piso de baixo, ao fundo. Tinha uma janela para um pequeno jardim
que era cuidado pelas psicólogas que ocupavam as salas da edícula localizada atrás
dele.
Ao
longo dos anos eu sabia das folhas verdes de setembro e de outubro e da falta
delas no meio do ano. Às vezes, via o
jardineiro mexer na grama, que não crescia e nos pequenos arbustos irregulares
que pareciam não vingar. Havia
maria-sem-vergonha, que insistia em brotar mesmo após ser eliminada.
Recorrência feliz de vida.

Ela
me agradava e passou a me preocupar depois que ouvi do jardineiro encarregado algo
que me soou perigo, como se indicasse uma vontade ou intenção de tirá-la de lá.
Era opinião de profissional, tá certo. Mas, sua fala dizia: "Muita sombra
para as outras flores". Pensei: “Flores
?! Onde ?” valeria o sacrifício da árvore por causa daquelas espécies tão
caseiras e sem gabarito? Não eram tantas, que justificassem o sacrifício da
minha árvore. Seria ela arrancada?
Era
como se eu tivesse estabelecido um critério de valor para justificar meu medo
pela possibilidade de uma decisão que eu não poderia evitar. Afinal a vista do
jardim era minha, só isso, mais o galho que sempre estava próximo da minha
janela e o soprar dos ventos em suas folhas. Aquele barulho ninguém jamais
poderia adivinhar. Como perder isso tudo?
E
havia também o som da igreja do bairro pautando o tempo. Ao final da tarde um arranjo especial de sinos anunciava as seis
badaladas das horas. Alguns clientes, quando voltavam, diziam desses sons que a
gravação da fita registrara. Eu me enchia de satisfação por saber que meus
clientes iam embora, ouviam as fitas e ainda marcavam esses sons dos sinos.
Outra
música surgia, às vezes, quando alguém repetia não muito disciplinadamente
sequências de sons num saxofone. Na distância, sopro, metálica saudade e
plangência. Quem mais na vizinhança se deixou levar pelo encompridado das
notas? Mas esse concerto precário de um jazz sem regularidade não durou muito
tempo.
Esses
privilégios acabaram quando tive que desocupar esse espaço que nem parecia estar
na Rua Frei Caneca, distante apenas duas quadras da Avenida Paulista. A casa
foi vendida e desocupada. Um tempo depois, passando por lá vi tratores enormes
aparando o terreno. Uma terra muito vermelha aparecia. Estava embaixo daquela
construção velha, que desapareceu. Embaixo da minha árvore.

Sobrou
o som dos sinos nas fitas gravadas. As notas entristecidas de um saxofone
brilhante nos meus ouvidos e os galhos da árvore na janela da minha
memória. Eu nunca fui visitar a igreja
de onde provinha aquele som litúrgico interminável. A árvore não saiu de lá, ao
menos enquanto eu fui dona daquela janela, que valia pelo galho entrando por
ela.
Ainda
hoje ouço as badaladas da igreja marcando as horas e os acordes do músico que
tinha minha companhia sem saber. Ainda guardo o horizonte enorme que minha
árvore inaugurava todos os dias.
Ana, estou prestes a ter a experiência da minha primeira sala. Adorei seu texto, pois estou sensível a tudo que gira em torno das primeiras experiências
ResponderExcluirQue bonito... Quanta sensibilidade e saudade... Belíssimo...
ResponderExcluirUm beijo.