quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

MARIA MARTINS, ARTISTA E MULHER

Ana Maria M. González

MARIA MARTINS? O documentário MARIA, NÃO ESQUEÇA QUE EU VENHO DOS TRÓPICOS descreve sua vida e obra. É uma escultora, gravurista, pintora, desenhista e escritora brasileira. Esposa de embaixador do Brasil. Agora você poderá saber que mulher extraordinária ela foi. Difícil estar entre esses papéis no começo do século XX. Daí o interesse por suas opções. Conhecê-la é estímulo para todas as mulheres, artistas ou não.


UMA VIDA DE MUITOS PAPÉIS

"Eu sei que minhas Deusas e sei que meus Monstros

sempre te parecerão sensuais e bárbaros.
/.../"você esquece
que eu sou dos trópicos, e de mais longe vinda,
vc esquece tudo isso, que de mais longe vindo
se mistura ainda nas minhas veias/.../”



O documentário MARIA, NÃO ESQUEÇA QUE EU VENHO DOS TRÓPICOS, com direção de Francisco C. Martins e Elisa Gomes, apresenta com inteligência uma quantidade enorme de entrevistas com historiadores, artistas, familiares da artista e especialistas do mundo das artes, além de imagens das obras de Maria (filmes e fotos). Além disso, o bom uso da linguagem do cinema e muita sensibilidade realizaram um filme lindo. Aquela sensação meramente jornalística que temos de documentários passa longe. 

Fiquei entusiasmada e, depois de assistir a essa obra-prima, li uma biografia de Maria Martins e andei por conteúdos dispersos pela internet. Por que motivo? Para saber mais a respeito de como ela construiu sua biografia e sua obra de artista.  

Maria nasceu em Campanha( 1894) e morreu no Rio de Janeiro (1973). Separou-se do primeiro marido, o historiador Otávio Tarquínio de Sousa, com a desaprovação da família, o que não deve ter sido fácil naquela época. Essa rebeldia, custou-lhe a perda da guarda da filha.

 Seu segundo marido foi o diplomata gaúcho Carlos Martins. Com ele, viveu parceria de objetivos e modo de vida. No papel de esposa de embaixador, ela viveu no Japão, Europa e nos EUA e participou de inúmeras atividades sociais e culturais, papel que desempenhava bem com sua beleza e personalidade vibrante.

Na Bélgica estudou com Oscar Jespers. Em Washington com Jacques Lipchitz, com quem aprende a trabalhar o bronze, abandonando o figurativismo. Quando monta um ateliê em Nova York, começa uma fase de dedicação intensa a sua atividade artística. Participou de mostras coletivas e em 1941, ganha uma exposição individual em Washington. Nada mal para quem teve em 1939 uma exposição abortada por causa da guerra, quando ainda estava na Europa.

Essa mesma guerra trouxe grande parte dos artistas para os EUA. Nessa época, então, conhece André Breton e, a partir dele, entre outros Piet Mondrian e Marcel Duchamp (com quem teve um relacionamento amoroso). Maria teve contato com todos, sabendo se dividir entre os compromissos de embaixatriz e os parceiros de sua vida de artista.

A partir da década de 50, voltando para o Brasil desempenhou papel essencial na propagação da arte tendo sido importante na organização das três primeiras Bienais de São Paulo.

Quando surgiram dificuldades para esculpir, começou a escrever. Foram artigos para o Correio da Manhã e livros sobre a China, a Índia e Nietzche. Elaborou outros assuntos como religiões e mitos que se fizeram presentes em sua obra de escultora.

Nesse percurso de mais de sete décadas, sua obra apresenta múltiplas expressões. E a escultura foi a mais produtiva. Mas, o que há ainda em sua história?  Falta a obra propriamente dita.

A OBRA

Dividida entre a vida de embaixatriz e a da escultora ela construiu uma obra que já ganhou sala especial na Bienal de SP em 1998; retrospectiva em Nova York (1998), cujo catálogo traz textos de André Breton, Micjel Tapie, Amedée Ozenfant e Murilo Mendes; biografia em 2004; retrospectiva no MAM-SP pelos quarenta anos de seu falecimento (2013) e documentário este ano. E esta lista não é completa.

E como são as esculturas de Maria? Formas intensas, tocadas por uma tensão emocional expressas em torcidos e retorcidos que impressionam. A própria Maria qualifica suas formas como deusas e monstros.

Maria Martins era “uma mulher de força extraordinária” e expressa esse vigor em suas peças. Há nelas uma vida e erotismo intenso. Suas figuras apresentam mãos e pés “que têm fome de espaço”, de acordo com um entrevistado. Falam de desejo e de uma fêmea devoradora.

A artista traz para suas formas uma energia selvagem junto a especial criatividade. Tendo entrado em contato com a Amazônia, incorporou seus mitos e suas divindades, “seu animismo e sua fecundidade tropical”.

Em toda sua obra, podemos perceber inquietação e ousadia. Podem ser, sim, formas que perturbam quem as observa por indicarem experiências humanas e misteriosas. É assim a escultura de Maria Martins: representa forças da natureza humana que gritam e nos mostram o que nem sempre é claro na existência humana.

Uma de suas peças que marca mais claramente esse aspecto quase primitivo é “O impossível” de 1946 que mostra duas criaturas possivelmente uma feminina e outra masculina, com cabeças em forma de tentáculos ameaçadores uns na direção dos outros.

Os especialistas nas artes identificam nessa obra o processo da atração sexual e da ameaça de morte. Talvez exista nele a expressão do amor como impossível. As formas se tocam e se repelem, contrapondo contato e perigo. Talvez essa peça represente o relacionamento entre ela e Marcel Duchamp.

Com charme e elegância foi esposa de embaixador, cumprindo todos os papéis sociais. E também foi a artista talentosa e com obra de repercussão internacional. Assim foi Maria, por quem Duchamp se apaixonou conforme demonstram as cartas que ele escreveu depois que ela voltou ao Brasil e que são lidas no documentário. Esse amante saudoso talvez tenha sido o parceiro na arte. Mas isso é apenas uma suposição da minha imaginação.

Pergunto-me como teria sido o relacionamento de Maria com Duchamp. Pelo documentário ficamos sabendo que a influência de um na obra do outro foi grande. Do ponto de vista pessoal, ela manteve seu casamento e família. Ele escreve cartas suspirando longamente seus desejos não mais preenchidos e sua saudade, os resmungos pela distância, a necessidade, a esperança de um novo encontro, tudo o que os amantes sofrem. Tudo está lá em delicadas cartas de amor.

Confesso uma curiosidade que se alonga também por essas paragens mais pessoais. Coisa de fã, quase de tiete. Maria Martins, além de ter sido eficiente nas recepções sociais, você foi artista e amante de Duchamp!

O crítico de arte Jayme Maurício (1926 -1997) diz a respeito dela: “Maria foi a personalidade que, sem abdicar jamais de sua feminilidade, representou no Brasil moderno do século XX tudo o que significou o surrealismo, na arte da escultura, na literatura, no sonho, na psicanálise, nas ciências, na política, no erotismo, na eterna busca do "Eu" e do "outro ", desde a natureza pujante da Amazônia à estratificação da mulher e sua atuação decisiva na virada do século”. Incrível, não é mesmo?

Maria nasceu mineira e morreu mulher da arte e do mundo. No recorte deste artigo, faltaram muitas informações a respeito dela. Que eu possa pelo menos ter deixado com você um pouco do retrato de uma mulher de uma força extraordinária.


PS:  Seguem o link para as entrevistas do comentário de 2017 e a indicação bibliográfica da biografia lida. https://www.liligopro.com.br/maria  (entrevistas)
Maria Martins, uma biografia . CALLADO, Ana Arruda. RJ: Gryphus;  Brasília, DF: Ministério da Cultura; BH: CEMIG, 2004.

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