Há
cantadas de todos os tipos: sedutoras, grosseiras, ridículas, poéticas,
infantis, bem-humoradas. Mesmo em tempos de assédio moral e de outros
radicalismos. Toda mulher gostaria de ter uma na lembrança. É um lampejo,
faísca elétrica, no ramerrão de um dia comum. Uma onda mais forte, em meio à
distração ou a certo marasmo que por vezes podem nos habitar.
Um dia, estava subindo
uma ladeira perto do largo de São Francisco, no centro de São Paulo. Um carro
estacionava na guia por onde eu passava. O rapaz que estava no lado direito ia
saindo do carro, abrindo a porta, perguntou-me sério:
-
Igreja não sei, mas há a capela da Faculdade de Direito, no largo logo aí acima
desta rua.
Dei-lhe
resposta, sem pensar muito, distraída. E aí veio a surpresa, clarão:
-
Quer casar comigo?
Titubeei, balancei nas
pernas. Sorri. Enrubesci? E me veio uma alegria imensa, como se de repente o
mundo se abrisse à minha frente enquanto eu seguia pelo meu caminho. Olhei a
roupa que eu vestia naquele dia, como se isso pudesse marcar o transitório do
evento. Justificar quem sabe. Era uma saia verde clara e uma camiseta bordada
na altura dos ombros com uns detalhes de miçangas desenhando pequenas flores e
folhas.
Foi assim que eu, me
sentindo mulher, senti a cantada. Qual de nós não quer se sentir desejada,
passível de amor? Qual de nós não quis ser bonita um dia? Não tirou da gaveta,
desprezada que estava em épocas difíceis, uma certa beleza, um sorriso
vermelho, uns cílios alongando os olhos, um colorido na roupa, um jeito
enviesado de pente no cabelo?
Mas, nem sempre as
coisas funcionam dessa forma. Os homens entendem tais sutilezas? As mulheres
ainda desejam as cantadas? Os comportamentos têm mudado muito.
Mas, meu desejo é que
a força de uma cantada feita com delicadeza não se tenha perdido completamente.
Ela é capaz de despertar a beleza do feminino como aconteceu quando o poeta
cantou "olha que coisa mais linda, mais
cheia de graça... é ela, menina, que vem e que passa...". Ele homenageava a mulher a partir
de seus olhos. Ele punha em movimento a sensibilidade que também estava nos
olhos dele. Descortinava a beleza em um encontro especial, ainda que fugaz,
entre o feminino e o masculino. Existimos a partir do olhar do outro. É o outro
que nos dá existência. Homem e mulher.
Guardo fortemente
dentro de mim o desejo de que elas não se percam. Nelas nos certificamos de
nossa presença, em inesperada realidade. Algo concreto preenche o ar, como se
de uma cartola do mágico de cara e luvas brancas, emergisse a essência da
natureza feminina. Ela é a ruptura dentro do prosaico. Quase um fragmento do
divino.
Nesse
pequeno movimento, há um ato generoso, tão provisório e pontual, há um contato.
Uma possibilidade faz-se verdade, um encanto. O homem nem desconfia como o
mundo se transforma. Nem precisa de mais, só isso basta. E o mundo fica melhor.
Excelente texto ! Sensível e poético ! Toda mulher deveria ler...e todo homem também , para que os gestos de carinho e admiração não sejam censurados e extintos pelos radicalismos feministas e politicamente corretos !
ResponderExcluirAdorei sua perspetiva : entre a rigidez do assédio e delicadeza da cantada há um abismo. Tomara que as novas gerações tenham esta perceção " olha que coisa mais linda a menina que passa no balanço do mar", isso diz tudo.
ResponderExcluirCoerente o seu texto. Profundo e sensível.
ResponderExcluir