“Vocês trabalham para quê? Eu
acredito que
a
única finalidade da ciência está em aliviar
a
canseira da existência humana.”
Galileu
Brecht
Qual é a relação que
existe entre a vida de Galileu, Bertold Brecht e as montagens teatrais da peça
desse autor a respeito do cientista? O que é essencial na arte do teatro? Para
tentar responder a essa questão, passemos por Galileu, por Brechet e pela experiência
do teatro.
O ASTRÔNOMO E O MATEMÁTICO, A CIÊNCIA
Galileu, italiano de Piza
nascido em 1564, foi matemático, físico e astrônomo. Mas essa é uma visão
sintética do currículo de quem foi entre outras coisas um dos fundadores do
método experimental e da ciência moderna. A partir de 1610, com um telescópio
já existente aperfeiçoado, ele explora os céus e por cálculos matemáticos consegue
prever o movimento dos astros. Assim, comprova a doutrina de Copérnico a
respeito do centro do universo: é a Terra que se movimenta e gira em torno do
sol. Depois disso sua vida seria ensinar as verdades da ciência e propagar o
novo modelo de universo. Mas isso estava em desacordo com os dogmas da Igreja.
Era o século XVII e a Contrarreforma instalava os tribunais da Inquisição.
Sob o jugo pesado dos
conceitos religiosos, ameaçado de tortura, Galileu nega suas ideias
publicamente. Em 1633, é mandado para prisão domiciliar. Nos anos de reclusão
até sua morte em 1642, ainda teve tempo para escrever seu importante livro
Discorsi (Discursos).
Dessa vida genial, Brecht fez
uma leitura.
O DRAMATURGO E ESCRITOR, A ARTE DE BRECHT
O texto de Bertold Brecht (1898-1956) a respeito de
Galileu ganhou mais de uma versão. Ele escrevia a terceira quando morreu. No
teatro, esse texto ganhou duas representações: uma em 1968 (Teatro Oficina/SP,
com Cláudio Correa e Castro) e outra em 2016 (Teatro Tuca/ SP com Denise Fraga).
Segundo Fernando Peixoto (1937-2012; diretor e ator
em 68), nessa época havia uma crise política do significado das teorias novas
em conflito com o arcaico (*). Ele continua dizendo que a descoberta do novo
entrava em choque com o poder. “Era uma discussão sobre aspectos da ditadura.”
Partindo do mesmo texto, tais representações são
iguais? Em essência, sim. Mas por acontecerem em tempos históricos diferentes,
cada uma manifesta aspectos particulares cujos significados incorporam dados do
contexto em que foram montadas. Além disso expressam preferências do diretor e
da equipe que elaborou a montagem em áreas de várias especialidades. São
atores, cenógrafos, músicos, iluminador, preparador vocal, figurinista
etc.
O que vai ser posto em cena irá
representar a intenção do diretor. Ele rege tudo. No caso da montagem de 2016
foram necessários maquiador, marceneiros e serralheiros por certas escolhas
para a encenação.
Os textos de Brecht sempre
trazem à tona questões políticas, o que se repete nas duas representações
citadas. Na atual, não faltam alusões às manifestações políticas. A diretora
Cibele Forjaz constrói uma personagem perto de nós. Galileu é guloso e ciumento
da filha, gosta de mulher, escova os dentes.
Em ambas Galileu representa a
angústia humana e o dilema existencial das escolhas e a luta entre a razão e o
dogma da fé.
Então, quando li no ano passado, que haveria
outra representação de Galileu, acompanhei nos jornais, nas entrevistas da TV e
do rádio. Tinha saudades daquela época em que o teatro chegava a mim
acompanhado de entusiasmo. Era uma descoberta da cultura e da arte. Então,
percebi que ao longo dos anos, tinha guardado Galileu dentro de mim, nos meus
olhos e no meu coração.
Tudo isso faz a grandeza do teatro: o trabalho de
equipe sobre um texto magistral que se sustenta ao longo do tempo e que suporta
várias leituras.
Mas, há um aspecto da
experiência pessoal junto ao teatro que compete a cada um de nós
particularmente. O palco cria um pedaço de realidade especial, como se fosse um
pouco mágica. Este aspecto talvez seja o mais essencial de todos.
UMA EXPERIÊNCIA MUITO PARTICULAR
Eu assisti à primeira
representação de Galileu em 1968 quando estava na faculdade. Era uma época de
turbulência política. Ditadura.
Em sala de aula, eu estava tendo
aulas de teatro com Décio de Almeida Prado. Presenciávamos ao vivo nas
encenações de um teatro muito vivo naquela época, o conteúdo sobre o qual ele
discorria na sala de aula.
Há uma sensação boa e uma
imagem na memória. Mas era intensa. O ator Cláudio Correa e Castro (1928-2005)
como Galileu, sob a luz de um holofote, imenso e solene dizia um discurso. Era
um ritual, uma cena que se enchia de significados. Por que motivo tal imagem
resiste em minha memória?
Ela me fez reviver o Galileu de 68. O mesmo
Galileu que, de acordo com a frase de epígrafe, para sempre nos lembrará que
precisamos aliviar a canseira da existência humana. Não terá sido fácil negar
suas descobertas para sobreviver. De alguma maneira essa história de Galileu e
o contexto daquela experiência de teatro me contaminou. E isso talvez seja o
essencial na arte e no teatro. As camadas de sensibilização possíveis, a
experiência particular.
No teatro, a encenação nos conduz para uma dimensão
fora de nossa vida cotidiana. A representação artística cria outro nível de
experiência existencial. Há um drama humano que se desenrola no palco. Artistas
incorporam personagens e se movimentam em um cenário. Tudo isso é uma fantasia
que vira realidade. E somos convidados a nela acreditar. Vale a pena não
contrariar. O essencial é a entrada no mundo da verossimilhança. E extrair de
todo esse conjunto o máximo possível. É a arte falando da vida.
Dessa forma, podemos acreditar que Denise Fraga é
Galileu, com voz e autoridade masculina. Com uma peruca avermelhada e
roupa de época, uma barriga falsa que vai crescendo à medida que a personagem
vai envelhecendo, mais uns gestos e caras e, temos Galileu, homem e
cientista.
Este é um relato subjetivo que cabe no tempo de
rápida leitura. Mesmo não recordando o significado daquele discurso, ele
fecundou cantos de mim com beleza e sedução. Havia um peso naquela voz, uma
seriedade naquela roupagem e mistério na iluminação. Reverberação. Tudo
conspirou para que minha memória guardasse para sempre essa imagem.
Foi assim que se organizou uma rede estética:
alguns aspectos da vida e obra de Galileu foram manifestados em um texto de
Brecht que virou encenação e me tocou. Muitas personagens participaram dessa
roda de muita arte. Que possivelmente tocaram muitas outras pessoas como
aconteceu com esta singular passagem que me acompanha ao longo do tempo.
(*) BALBI, Marília. Fernando Peixoto. Em cena aberta. AP: Imprensa Oficial, 2009. p.68
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