sexta-feira, 10 de junho de 2016

UMA TARDE COM PICASSO E DANTE

Para Luiz

O convite foi aceito. Mas algo despertava desconfiança... Domingo em exposição concorrida? Ir ou não ir? A chuva e friozinho me convidavam ao aconchego.
No fundo eu queria mesmo era não sair de casa. Mas, era hoje. A visita a Picasso com o amigo já estava sendo agendada há certo tempo.  Foi assim com dúvidas, que tirei o pijama e desliguei o computador em que trabalhava. O pior foi tirar o chinelo quente do pé.
Quando liguei para confirmar, sim, ele estava atrasado, mas já a caminho. Será que ele também tinha ficado meio mole em casa e na dúvida?
Percorremos as muitas salas com obras e textos explicativos que prometiam a trajetória do pintor. Mas eu vi na amostragem menos do que me fora prometido nos textos iniciais. Onde estavam obra da fase azul? E a Suíte Vollard? Dela, só encontrei uma citaçãozinha. Eu estava realmente ranzinza.
O amigo atento se interessava pelo artista. Sorte minha. Não fosse a sua companhia, eu teria me frustrado mais. Suas observações passaram por Braque, pelo rompimento da forma no concretismo, que estava vivo ali à nossa frente. Formas estranhas dentro de uma moldura são duas pessoas na praia. E outras formas não menos estranhas lembram vagamente dois rostos se beijando. Quadro famoso. Conversamos a respeito disso tudo. Gostamos ou aceitamos? Coragem nossa versar a esse respeito.
Sem dúvida havia coragem do pintor em deixar um dos dois olhos sem preenchimento em certo quadro. Ou então, deixar um outro parecendo não totalmente terminado, pois nele podia se perceber traços de um desenho que teria servido como base. Eu me sentia uma criança questionando coisas que não deveria questionar. Ou como aquela menina de três anos no colo do pai, conversando,  com a espontaneidade de sua infância. Nossas hipóteses  eram puro exercício de infância fora de tempo. Por que não? Nós tínhamos entrado no clima de sua obra. Mão erudita, olho selvagem, era o título da exposição.  
Depois junto ao café outros assuntos deslancharam sem linearidade. Falamos das leis da perspectiva de uma palestra a que eu tinha assistido. Incrível, mas elas surgiram como decorrência de descobertas da ótica e da visão, passando pela geometria e por grupos de franciscanos em Oxford. Certo dia recebeu o nome de perspectiva e daí em diante transformou a pintura.
Essa história de padres franciscanos e ótica se juntou a impressões sobre a Divina Comédia, livro presenteado ao amigo, com ilustrações de Gustave Doré que nos fez mergulhar mais ainda no mundo da Idade Média. Fomos pelas mãos de Virgílio e na companhia de Beatriz ao paraíso, ao purgatório e ao inferno. Imaginamos a complexidade dos círculos a partir dos quais o mundo era descrito por Dante.
Passamos pelas hordas de pessoas que não fizeram bem nem mal e que estão lá em um canto sendo observadas. Como seria o barqueiro que leva as pessoas para as cidades das dores? E apareceram entre nós também as criaturas de Bosch. São elas desenhadas com ou sem perspectiva? A dúvida nos colocou sorriso nos lábios. Que importava esse detalhe em meio ao universo de horrores medievais e infernais de Bosch? 
Mas, houve em meio a eles, algo que nos silenciou por um tempinho. Uma saudade de amor deve ter nos visitado, quando apareceu a história do encontro nunca acontecido entre Beatriz e Dante. Pouco importa ter sido ou não ter sido verdade, se Dante dedicou a ela a parte mais bonita, a representação da beleza e do amor.
E o meu amigo voltava a ter momentos de deslumbramento ao falar das ilustrações de Doré. Seus olhos brilhavam enquanto descrevia tais imagens com movimentos delicados no ar. Enfáticos braços e mãos compridas de músico. 
E de lá, íamos às novas formas representativas na pintura de Picasso. O novo que assusta. E voltávamos às ilustrações delicadas de Doré, ao mundo de Dante. E ressurgiam as formas sem perspectiva de Picasso. Repetições e idas e vindas porque elas eram necessárias para ratificar nossa admiração por cada uma dessas expressões de arte.
Uma colcha de retalhos, nossa conversa foi de pedaço em pedaço. O que sustenta a delicadeza dos finos traços de Doré? A grandeza dos traços de Picasso ou da criação do mundo de Dante?
No fundo, talvez procurássemos algum sentido no sem sentido do nosso momento pessoal ou histórico. Ou talvez estivéssemos tentando entender uma justeza em cada experiência dos artistas e das expressões da arte. O que significa harmonia e equilíbrio em arte? Será que a perspectiva poderia cumprir essa função? E Picasso, como conseguiu dar equilíbrio a sua obra?
Foi dessa forma, que o domingo chuvoso e friorento se fez iluminado.

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