quinta-feira, 30 de junho de 2016

CONSTRUINDO E DESCONSTRUINDO A LEI DA PERSPECTIVA


A palestra PERSPECTIVA, UMA VIAGEM FRANCISCANA (*) no Museu de Arte Moderna no Ibirapuera chamou-me a atenção pelo título. O que tem a ver a lei da perspectiva com os monges franciscanos? Essa viagem seria uma metáfora apenas? Sim, talvez um recurso de retórica, um título criativo. Mas, a partir da pesquisa competente do curador do MAM fiquei sabendo da gênese da lei da perspectiva. E embora saibamos que séculos depois ela foi descontruída, vale a viagem. Entre nela comigo.


A GÊNESE DA LEI DA PERSPECTIVA


Quem gosta de pintura pode ter uma noção do que significa a lei da perspectiva. Desde antes do Renascimento ela proporciona noção de profundidade e ilusão de verdade às pinturas.

Mas essa lei, antes de surgir como uma técnica para o desenho, foi estudo teórico longamente desenvolvido a partir da observação de cunho científico e de elementos de teologia. Felipe Chaimovich, o curador do MAM descreveu o longo caminho para que se chegasse a ela. As leis da perspectiva surgiram como decorrência de descobertas da ótica e da visão, passando pela geometria e por grupos de franciscanos em Oxford. Com o nome de perspectiva, transformou a pintura.

Tudo pode ter começado com os estudos de Euclides por volta de 300 a.C. Seus princípios de geometria e ótica se preocupavam com a visão. Ele estabelece que o elemento essencial é o raio visual, uma linha que se expande a partir de um ponto. Para ele, a luz se comporta como essa linha que se expande radialmente. Ele tem como preocupação a formação das imagens.

A presença de Al Kindi (séc IX) foi acrescentada às personagens dessa história. Ele muda o foco do estudo da visão por causa da interdição das imagens no mundo árabe. Tendo contato com os gregos, com Euclides, entende a ótica como estudo da geometria da luz, independentemente das imagens visuais.

A colonização da Península Ibérica pelo califato árabe trouxe rica troca de informações. Traduções em Toledo aproximam os estudiosos cristãos e islâmicos que têm muitos interesses comuns do ponto de vista dos experimentos e do caráter teológico.

Tais textos chegam a alguns centros de estudos de teologia na Europa como Oxford para onde haviam sido enviados frades por Francisco de Assis para estudos de teologia. Lá, de 1229 a 1235, eles tiveram aula com Robert Grosseteste, grande erudito.

Grosseteste estudava a luz, a visão, a ótica e a física. Escreveu livros e deixou seguidores. Ele se desenvolveu pelas ideias teológicas que incluíam concepções de um universo esférico, um entendimento geométrico da criação do mundo: um ponto, linha, esfera. Um universo tridimensional, embora estático porque sem tempo. E a esse estudo da natureza a partir da geometria da luz ele denomina perspectiva, palavra que não existia no latim antigo. Estes estudos estiveram sempre ligados à busca de compreensão de Deus, ou seja, a intenção teológica sempre esteve presente entre eles, cristãos e islâmicos.

Na década de 1250, Roger Bacon se converte franciscano para poder estudar em Oxford. Defende a necessidade de se criar uma ciência da perspectiva, um campo de estudos autônomos para o estudo do que é transitório nos fenômenos físicos e do que é eterno: as formas geométricas (argumento grego proveniente de Aristóteles).

O outro nome importante em Oxford é John Pecham (ou Peckham), que em seu manual de perspectiva largamente copiado, afirmava haver traços da geometria na natureza. Era a permanência da relação entre teologia e ciência.

Em 1390, um comentador de Pecham, Pelacani dá aulas na casa de Dante o que promove impacto no círculo de Florença. Lá encontra-se o ourives e arquiteto Bruneleschi que dá aulas para Masaccio, pintor. Este último, por sua vez, fazia uma pintura ilusionista, ainda rudimentar no desenho do espaço.

A questão da perspectiva era teórica. Como desenhar o espaço esférico no plano?  Bruneleschi não sabia desenhar o que ele descrevia de forma ilusionista. Em sua época havia a técnica da espinha de peixe usada desde os tempos dos gregos. É Masaccio quem realiza a primeira obra em perspectiva, duzentos anos depois de Grosseteste ter criado a teoria por volta de 1425 em Florença.

A partir daí a perspectiva se separa de sua origem ligada a princípios teológicos. Ganha o caráter laico e passa a ser usada em ilustração em livros de engenharia, botânica, geologia e outros.  

Em 1563, ainda em Florença, a partir da revolução da perspectiva, vai ser criada a Academia das Artes do Desenho. E daí, a noção de arte que temos até hoje.

Ou seja, a criação da perspectiva apresenta elementos insuspeitados como a geometria e a ótica, as preocupações dos frades e monges árabes na busca de uma relação entre a natureza e a presença de Deus e ideias a respeito da Criação.

Uma verdadeira viagem daqueles homens que andavam em investigações e movimentos íntimos para alcançar um sentido por onde sua curiosidade os conduzia.

ARREMATE POÉTICO

Poucos dias depois de assistir a essa palestra, visitei a exposição de Picasso e me dei conta de que no início do século XX a perspectiva tinha sido desconstruída.

A ilusão de representatividade da pintura acontecera como consequência dos estudos e experimentos dos cientistas da óptica e da luz. Muitos séculos depois, Picasso e Braque a colocam abaixo. Por que motivo?

O que ocorre quando Picasso e Braque resolvem que a obra de arte não necessita mais de critérios de veracidade ou de ilusionismo? Eles decidem que não interessa mais o objeto tal como ele é, mas a imagem mental que se faz dele. O que pode significar essa mudança?

Seria imprudente tentar uma resposta. Sou curiosa e amante da arte. De antemão, sei que a natureza desta reflexão é particular e subjetiva. É a minha viagem.

Sabemos que condições históricas e culturais em grande parte promovem os desenhos das expressões artísticas. A teologia que estava implícita no mundo da Idade Média e ainda no Humanismo era bastante presente já não existe mais no início do século vinte. A arte se descola das manifestações teológicas. A arte não existe mais para louvar Deus ou seus fundamentos para a busca por explicações da criação do mundo.

No início do século XX ou neste século XXI, o que nos cabe é muito diferente. A cada momento histórico, sua matéria. A complexidade do mundo atual favorece o empobrecimento da sensibilidade. Em meio a uma crise de valores imensa, delicadas dimensões da vida estão se perdendo. Perdemos a relação com a divindade.

E a lembrança de um mundo em que a presença de Deus era mais próxima acorda dentro de mim. Uma insatisfação imensa me invade.

Na urgência de uma resposta, confiando que ainda me sobre uma réstia de bom senso e um fio de racionalidade, neste momento, vivo a sensação de que na arte, somente nela, podemos experimentar o divino em nós. Ela pode salvar nossa consciência da absurdidade da vida. Ela pode preencher o desencantamento, o esvaziamento de sentidos. Ela pode nos indicar um caminho para outras narrativas.

Mesmo que na arte de nossos dias não encontremos algo que corresponda a nossas necessidades de representação, ela tem se mantido como possibilidade aberta e como potência de expressão.

Por essa potência, ela pode ser em si mesma aquilo que traz para mais perto de nós o traço divino da natureza. Que seja.

Uma nostalgia medieval chegou a mim. Invasão. Lembrei-me daqueles retratos bizantinos com os olhos mansos e parados.

Proximidade franciscana. Que fique.

PS: Felipe Chaimovich tem uma paixão por Francisco de Assis que gerou frutos mais do interessantes revelando relações entre arte e ecologia. Daí, aconteceram uma exposição coletiva “Natureza Franciscana” , um belo ensaio “Arte e ecologia” publicado na revista do MAM no.5 abril/maio/junho-2016 e a palestra que me ofereceu repertório para desenvolver as ideias deste texto. Visite o site do MAM: http://mam.org.br/

IMAGENS: São Francisco de Assis, por Militão dos Santos, pintor naïf brasileiro; Les Demoiselles d´Avignon, Picasso; Imagem de catedral para estudo de perspectiva.

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