sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

CADÊ A NOTA, VERDI ?


As ondas do rádio começam a falhar. Na sintonia do meu som, entra uma melodia estranha fora do esperado. Diminuo a velocidade do carro, dou um giro no dial. Um pastor fala a fiéis e tenta salvar-lhes a alma. Não seria má ideia salvar minha alma dos pecados do mundo. Porém, não agora. Era hora do CD.

Meu carro roda pela estrada quase vazia. A paisagem continua verde, ampla, embora o céu nublado me negue a luz do sol e o azul do infinito. Qual CD? É preciso atentar para um desejo determinado. Não é qualquer tipo de música que servirá. Uma ópera de Verdi poderá compor um acorde sonante. Suas notas irão fazer agora a sonoplastia da viagem. La Traviata, uma história de amor bem dolorida.


Chegam as personagens com suas roupas de século dezenove, coloridas. Armado o cenário com pesadas cortinas, praças, salões. Toda a imaginação é chamada como companhia, no lugar da natureza em sua imensa e bela solidão. Violeta, Alfredo e seu sonho de amor. Cenas, variações, a complexidade da vida, os paradoxos nos relacionamentos. Óperas carregam o poder imenso de trazer o mundo da experiência. Uma quantidade enorme de informação. A alegria e a química amorosa, as intrigas, o sofrimento e a esperança. Parte da grandeza e da tragédia humanas.

Essa ópera me encanta. Embora conhecida, a melodia não me cansa. Melodia eterna. Vácuo no infinito. Buraco branco.

O trecho da abertura inicia lentíssimo e cresce, ma non troppo. Me impacta de novo como se fosse a primeira vez. Nunca esquecer. Conjunto de sons tão delicado. Relembrar como se fosse a primeira vez.

E aquela nota que falta? Em conversa com um amigo que sabe música, conversamos certa vez sobre isso. Observação que me persegue. Perguntei-lhe se havia percebido o detalhe de uma específica sequência melódica, logo no início da abertura. No que seria a introdução. Você sabe de alguma informação a esse respeito? Será engano meu? Falta de informação técnica? Nada disso. Ele também não sabe e, talvez, nem tivesse percebido.

A sequência de notas segue num crescendo e uma última nota, que fecharia um conjunto naturalmente organizado dentro de uma série normal, é eliminada. Aquela nota que encerra a série foi cortada. Não, não prejudica a melodia que segue e chega à sequência seguinte, num alçar de voo, perfeita, magistral.

Onde está a nota oculta naquele compasso? Brincadeira do compositor com a música, com os tempos do compasso. Impossível saber o que teria passado na cabeça do compositor. Não terá sido esquecimento, com certeza. Falta um sol, um mi – ou um dó? Impossível aguentar. Fica a sensação da falta e a corrida desesperada ao que vem depois. O alívio curador seguindo o que é quase um desespero no ar.

Talvez esta tenha sido a estratégia criativa do compositor. Criar o salto, o preenchimento da imaginação. E eu, no diálogo com a falta, paralisada naquele som ausente. Onde? Traço de genialidade a mexer com o ouvinte. Com a minha fragilidade. Fico na beira do despenhadeiro.

Ponho o trecho a tocar novamente. A garganta quer gritar a nota intencionalmente excluída da linha melódica onde ela deveria estar. O descanso na série seguinte não me apazigua a alma. Intervalo absurdo. E a delicadeza da ária continua.

Na memória, permanece a falta. No meu monólogo, sobra a presença do músico. Sonoplastia largamente compensatória da ausência do sol e do azul. Reticências e suspensão de ritmo.
Cadê a nota, Verdi?

PS: Essa crônica foi publicada a primeira vez em Maio de 2009 no site Crônica do Dia.

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