sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

PAPO DE ÔNIBUS


Eu subi no ônibus e me sentei na primeira cadeira do corredor que encontrei, cansada e contente por não ter ficado em fila. Havia um senhor de cabelos grisalhos na janela. Assim que o ônibus saiu, ele começou. “Imenso, este ônibus”, disse. Concordei. Preferia ficar quieta e levar minha pequena jornada em silêncio, mas ele ainda falou algo a que não dei atenção.

Ele não se importou e, poucos segundos depois, continuou puxando assunto.

— Quanta gente ao mesmo tempo vai nele. Mais de mil pessoas.

— Fez quatro anos em março que ele me apareceu da primeira vez. De lá pra cá, mais três vezes. Jesus mudou minha vida.



— Eu não sei ler. Jesus não quis que eu aprendesse. Mais de cem mensagens eu já entreguei que ele mandou. A Igreja hoje tem às vezes só cinquenta. A senhora é evangélica?

Ops, será que ouvi mal? Um exagero. Não, acho que ouvi mal. Mas ele continuou em várias considerações sobre tamanho de ônibus e população. Logo depois, mudou o assunto.

Imaginei que seria mais uma pessoa que se convertera pela força da fé.

Não sou.” Se eu fosse, talvez pudesse entender o que é entregar mensagens. Ele continuou em sua discreta incontinência verbal: “Na terra não podemos consertar o mundo. Jesus pode. Ele me ensinou. A Bíblia é sagrada.” O cheiro de guardado do blazer de lã não combinava com os sapatos marrons.

— Não aprendi a ler porque Jesus não quis. No ano passado o pastor ficou doente e desenganado. E com as orações ele ficou bom. Sou do Ceará. O povo que vai da Alemanha para o Japão gasta menos tempo que o que vem do Ceará.

“Não aprendi a ler porque ele não quis.” Essa frase repetida doeu em mim. Muito. Talvez tanto como nele próprio.

De repente, fez-se uma ligação entre eu e aquele desconhecido. Ele não era mais um cidadão no ônibus, passageiro anônimo da cidade grande. Era companheiro da triste sina de uma vida difícil, também perdido entre ruas e ônibus. Eu estava sofrendo por imaginar a situação de um desejo interrompido — ferida aberta — e sua atitude respeitosa à autoridade: não aprendi porque ele não quis.

Eu estava rendida à solidariedade humana através de uma dor. Era um drama de alguém que se perguntava algumas coisas, mas não todas. Procurava comunicação e expressão para as aflições de sua alma curiosa. Alívio para sua insatisfação, cobertura de uma defasagem entre sua expectativa e a realidade. Não podia dar muita continuidade a seus pensamentos renitentes. Ele poderia se perguntar: por quê? Mas, não. Parava antes das possibilidades, numa espécie de aceitação, loucura mansa. Delírio?

Ele não se dava o direito de questionar por que papo de ônibus é assim. Eu não queria conversa. mesmo assim, o encontro aconteceu, em meio à corrida do dia-a-dia, me apresentando o ser humano em sua tragédia. Trágico era ele querer ler e não poder investir contra o que no seu imaginário — a autoridade máxima da hierarquia de sua religião — o impedia de ler. Dentro dele não havia espaço para nada diferente disso. E se ... quem sabe? Uma revolta, um questionamento.  Um gesto de energia. Uma pedra na mão. Nada. Havia uma parede enorme de inconsciência entre ele e a realidade. Injustiças de um mundo mau. Um desperdício. Um analfabeto funcional em tudo na vida. Um quase. Um projeto mal acabado. Tão desajeitado. É assim.


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