quarta-feira, 29 de março de 2017

LION, UMA JORNADA PARA CASA

Ana Maria M. González

O filme LION, UMA JORNADA PARA CASA, nos conta a história de uma criança indiana que acaba sendo adotada por uma família australiana. Quando adulta, sai em busca de sua origem. Temos uma interessante biografia e ditames da vida que parece estarem por trás de tudo a despeito da vontade de todos. Seriam esses os mistérios além de nossa vã filosofia de que falou Shakespeare?

LION, UMA JORNADA E UM CHAMADO

Saroo, a personagem do nosso filme, na infância é interpretada por Sunny Pawar e na vida adulta pelo sempre simpático Dev Patel. A direção de Garth Davis é correta e a presença de Nicole Kidman é um dado a mais de graça e talento no conjunto harmonioso da narrativa. A produção australiana de 2016, mereceu as muitas indicações que recebeu para o prêmio da Academia.
A narrativa se alonga na primeira parte do filme em que descreve a vida da criança com seu irmão, irmã e mãe. Em seguida, ela se distrai dos cuidados devidos e se perde do irmão. Como estava em uma estação ferroviária, entra em um vagão e, sem ter feito esta opção, parte em uma peregrinação por cerca de 1600 quilômetros até chegar a Calcutá, capital de Bengala, onde se fala o bengalês, diferente da sua língua hindi. Por enquanto é esse o seu destino e porto de chegada.
O trabalho de câmera é primoroso e se coloca a favor da perspectiva da criança que observa o mundo em que se extraviou e em que tem que sobreviver, defendendo-se também da maldade de adultos. Até que ele vai parar em um orfanato e é adotado por uma família da Austrália.
Começa, então, a segunda parte da nossa narrativa. Ele cresce, a vida segue normal até que ele entra em contato com a cultura indiana. Desperta nele, então, a falta imensa de sua origem. Ganha força a urgência de resgatar essa família. Quando nos esquecemos da família de origem?
A partir dos instrumentos da tecnologia, passando por momentos de angústia pessoal e muitas dúvidas, ele se põe na tarefa difícil de resgatar seu passado.
O que esse filme nos mostra?

DE ONDE VEM O CHAMADO?

É longa a jornada da criança pelos momentos de desespero e de desconsolo. Depois de andar por cerca de 1600 km, ela não sabe o nome de sua mãe e o povoado em que mora sua família é desconhecido. Não tem o que comer. Passa por perigos percebidos por sua sensibilidade. Qual dado dessa realidade é mais difícil de experimentar? E quanto desse pedaço de vida permanece ou é diluído na memória quando  nos tornamos adultos e adaptados em outro contexto cultural? Será que essa experiência desaparece dos registros? Qual é o impacto que ainda pode ter em momentos futuros?
Quando Saroo já adulto se dispõe a fazer um curso de cunho profissional em Melbourne, encontra colegas indianos. O sabor de um doce específico e que era objeto de seu desejo na infância, o tira do conforto de sua situação de filho adotado. Quem já não experimentou a força da recordação de uma iguaria culinária? O doce da avó, o bolo da tia. Cor, textura e perfume nos carregam para um espaço-tempo especial. Essa convivência com os parceiros de mesma etnia abre para Saroo espaço para uma saudade.
Na verdade, ele não deixara de sentir falta de sua família.  Mas essa saudade se manifesta aguda, como se neste momento algo tivesse acordado. Como se uma espécie de relógio interno chamasse Saroo para seu passado. Ir ao encontro de sua origem torna-se urgente. Dentro dele surgem perguntas. Estavam adormecidas? Por quê agora? Sua identidade cultural e social emerge como se fossem raízes de uma força sem par arrebentando a superfície, pedindo ar.
Então, os recursos de tecnologia lhe servem de apoio nessa busca. A memória é fonte de informações e elas vão sendo reunidas a serviço do objetivo maior. Um grande esforço de resgate desses resquícios de passado é colocado em ação. Cada traço ou sinal de seu passado é recolhido com cuidado. O que sobrou da mãe amorosa e doce? Dos caminhos que a criança percorria para chegar a sua casa? A última visão da estação de trem e da caixa d´água em que se perdeu do irmão? O excelente trabalho de câmera, de foto e de sonoplastia estão empenhados na busca dessas lembranças da personagem, enterradas em algum lugar de seu subconsciente.
O esforço é compatível com a intensidade desse chamado intrínseco. A tarefa quase heroica, que pode ser em vão, não impede os movimentos de Saroo. Não há outra atitude possível. Desistir seria dar-se a algum tipo de morte.
A imagem de uma cena em meio à natureza com centenas de borboletas a sua volta, mais a imagem de um terreno em que ele tinha andado, mais um dado da sorte e ele acaba descobrindo o povoado de sua infância. O Google Earth nessa história acaba sendo quase personagem, o que acabou gerando até certa grita de parte de alguns críticos de cinema.
Quando acontece o encontro do que se buscava, há sensação de paz. As perguntas tiveram suas respostas. As pontas se reconectaram e um círculo se fechou. Tudo retomou sentido na vida de Saroo, que também teve oportunidade de entender sua presença na vida da família australiana. Temos um final feliz para um filme bonito.
Mas o que ocorreu, enfim? Que relógio interno foi esse que empurrou a personagem para seu passado? De onde vieram as razões misteriosas e ocultas que sustentaram a demanda de Saroo naquele momento? Ainda que saibamos como funciona o psiquismo e as forças emocionais profundas, não sabemos porque chamado ocorreu naquele tempo e não em outro.
São assim as motivações da vida que nos impulsionam a certas decisões. Assim é a vida, assim misteriosa e surpreendente. Como ele poderia imaginar que o depoimento de sua mãe adotiva viria ratificar sua presença nessa família? Tudo já estava escrito?
De todas esses fatos e emoções, sobra a sensação boa de que temos uma voz interna em algum lugar dentro de nós, que será mais ativa em algum tempo. Ela está lá e se nos chamar, não podemos hesitar. Haverá boas razões para esse chamamento. Confiemos. Isso não é pouco.

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