quarta-feira, 8 de abril de 2015

BIRDMAN, DO SUPER-HERÓI AO MITO

Leonard Nimoy, o Dr Spock na série Star Treck, escreveu uma autobiografia chamada I am not Spock (eu não sou Spock). O título da autobiografia é quase um grito de liberdade de Nimoy em relação a seu personagem famoso. Para ele deve ter sido difícil carregar a fama de sua personagem. 

Em alguns aspectos, isso também acontece com a personagem de BIRDMAN OU A INESPERADA VIRTUDE DA INOCÊNCIA. O filme nos traz esse assunto e outros. Siga o texto.
REALIDADE E FICÇÃO
Este lugar é horrível. Nosso lugar não é nesta pocilga.

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Essas são as primeiras palavras ditas pela consciência da personagem que  podem se referir ao teatro da Broadway comparativamente a Hollywood. Podem se referir também ao mundo real em relação ao dos super-heróis. Qualquer que seja a interpretação é uma pista de que algo não vai bem. E essa crise é o que move a história. 
O filme de Alejandro Gonzalez Iñarritu (2014) que foi vencedor de muitos prêmios do Oscar 2015 apresenta técnica cinematográfica inovadora, atores impecáveis e roteiro de tirar o fôlego. A trilha sonora é baseada no som de uma bateria, elemento importante na formação do clima intenso da narrativa. O músico Antonio Sanchez (participação no Pat Metheny Group) confessou a dificuldade para chegar ao som que o diretor queria: uma trilha sonora inteiramente criada na bateria. Iñarritu desejava algo espontâneo, muito jazz e sujo, sem planejamento. Antonio Sanchez conseguiu. De forma impressionante cria o som adequado aos corredores do teatro St James Compatível com a técnica da câmera do diretor.
A história nos traz um ator Riggan Thomson (Michael Keaton) que já viveu a popularidade como um super-herói (Birdman) e se negou a fazer o quarto filme da série. Na verdade, agora ele busca algo que não teve como super-herói, algo além da fama: quer reconhecimento. Para tanto, Riggan escreve e dirige uma peça que, ao longo do filme, passa pelos últimos ensaios.
Junto a esses momentos antes da estreia, podemos observar o cenário da indústria cultural, das celebridades e da exigente (e irresponsável?) crítica especializada de Nova York.  Ainda assistimos às situações de vida das outras três pessoas envolvidas na montagem, do assessor de Riggan, da filha dele recém-saída de uma clínica de recuperação de drogas e de sua ex-esposa.
Esse conjunto de pessoas parece uma multidão em meio a um cenário pequeno: um teatro em um quarteirão central de NY, camarins em corredores estreitos que se alongam em tomadas cheias de sons de uma bateria que mantém o ritmo alucinante de uma câmera que percorre tudo sem um corte, ou seja, é tudo um só plano sequencia. 
Além disso, temos particularidades da personagem Riggan que inicia o filme levitando e movimenta objetos com sua força mental. Podemos nos perguntar se se trata ele mesmo de um super-herói, visto que tais características de comportamento não são comuns a simples mortais.
Além dessas estranhezas, a personagem é acompanhada o tempo todo por uma voz  que chega a ganhar corpo, o de sua personagem heroica, o Birdman. Formam uma identidade dividida e em crise. Riggan não consegue calar essa voz que o incomoda e que ele insiste em negar até com violência.
Nas resenhas a respeito desse filme encontramos alguns qualificativos tais como: humor negro, transgressor, ácido; diálogos sarcásticos, fortes. Filme em ritmo nervoso. Eu acrescento: inconformidade, insatisfação, crise aguda. Momento de tensão máxima antes da estreia da peça de teatro em que se pergunta a respeito do que é amor. E a personagem do palco, ao tomar contato com a falta de amor, diz que ele mesmo não existe, pois não é relevante para ninguém. Mas, é assim também, o momento de vida de Riggan com complicações emocionais de toda a ordem, confundindo  reconhecimento com amor. Ele conseguirá o reconhecimento profissional que deseja? Isso resolveria sua crise?     
DO MITO À REALIDADE 
birdman_2_mar15_-_copia.jpgRelacionar o super-herói ao mito de Ícaro não é heresia. Essa é uma perspectiva possível e sofisticada, uma complexidade que só um grande filme nos oferece. São muitos os níveis de significados porque são inúmeras metáforas e cenários para as representações real  (a de Riggan) e fictícia (a do palco). Em meio a elas nomeia-se o grego Ícaro. Bolas de fogo correm o firmamento em direção ao solo. Seria uma representação da queda de Ícaro? 
         

Dédalo e seu filho Ícaro precisam sair do Labirinto em que se encontram. O pai, que representa a inteligência prática e também o artista universal, ou seja, de muitos talentos, realiza asas para os dois voarem. Dá asas e a advertência para que seu filho não se aproxime do sol. Em vão. Ícaro é imprudente, a cera derrete e ele morre nas águas do mar. 
Dessa forma, além de ser um símbolo do desejo humano de voar, Ícaro é também o intelecto tornado insensato, a imaginação perversa, uma doença desmesurada e temerária do espírito. Assim o dicionário de símbolos de Chartier e de Gheerbrant conceitua esse mito. Assim podemos conceber nossa personagem: vaidosa e temerária. 

As personagens do filme fazem parte de uma tragédia. Tudo é fatal e intenso. Os apertados camarins e infindáveis corredores do teatro são o labirinto do Minotauro em que elas se perdem e se encontram. Sufocante. Um rumor um som de bateria alucinante acompanha os passos de todos. Refaz-se uma história mítica, de um ser aprisionado querendo ultrapassar os limites da natureza do humano. Estar no labirinto é viver a vida como ela é. Quem deles se apercebe disso? Ainda pode acontecer o desejo de liberdade. 
Riggan é um Ícaro desejando ser livre, mas dividido entre seu momento presente e o passado que lhe cobra fidelidade. Ele se encontra em uma encruzilhada. Entre o desejo de reconhecimento (narcisista) e a sensação de solidão de sua personagem na peça que encena. 
Ao querer dar o salto de Hollywood à Broadway, de celebridade popular ao reconhecimento no teatro terá ele extrapolado seus limites? Todo o trabalho mental e corporal não o protege da turbulência. Qual será o pecado trágico do arrogante e destemido Riggan? 
Cansado por lhe parecer que a paz é impossível, desiste. Em estado de calma, ele conversa com a ex-esposa para lhe fazer a confissão de amor. Daí, entrega-se à morte. Nesse momento, no palco em que ele se encontra caído, assistimos a uma dança em que se misturam a banda e outros super-heróis. É uma festa de sonhos humanos de superação. 
Mas, após esse momento de dor imensa, acordar tem outro sentido. A crítica do jornal é surpresa bem-vinda, o aconchego da filha e presença da ex-esposa são a resposta para a pergunta da personagem que Riggan encarnou no palco. Tudo se assenta em sua vida ao mesmo tempo. E ele, não mais em crise faz o que lhe cabe, pois tem o dom: ele é o herói de sua vida. Daí então, ele pode ser o super-herói, pode encarnar a mais pura essência de Ícaro sem ter as asas derretidas pelo sol. 
birdman_3_roman_portillo_mar15_-_copia.jpgFoi preciso suportar a morte para atingir outra percepção em que ele recupera Birdman como algo próximo e impresso em sua alma, como um mito a ser celebrado. Ele pode agora olhar os outros á sua volta com atenção tendo o sonho vivo no alto. O reconhecimento que dá sentido à vida parece ser o amor.
Talvez seja essa realização de amor (e de entrega) em vários níveis a inocência prometida pelo título do filme. Ela é inesperada e surpreendente.


A cena final nos dá o olhar da filha a compreender a aventura de seu pai. Um olhar com alívio e alegria de juventude. Uma cumplicidade, um conluio entre duas inocências. Mantém-se o sonho do herói.
   
É um filme para fortes. Fortes e sonhadores.
  
PS: Leia o artigo sobre outro filme da série 2014, com indicação de melhor atriz, DOIS DIAS E UMA NOITE, em que há a descrição de uma experiência difícil mas que, quando enfrentada, nos dá um lindo presente:   

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