A jovem vendedora da loja de cosméticos começou, então, a passar nos
meus cílios um preparado branco, especial para seu alongamento. Com cuidado,
depois, passou a cor propriamente dita: um tom de marrom. Foram poucos e
precisos gestos com um sorriso nos lábios que acompanhavam as falas da minha
cunhada que fazia brincadeiras com a situação.
Depois do almoço, meio cansada e com a face com certeza desbotada, por
uma manhã agitada, era interessante a ideia de ver meus olhos delineados de
outra forma, mais cheios, mais bonitos, mais qualquer coisa.
Olhei-me e o espelho diria em seguida que ela tinha feito um grande
trabalho. Fiquei entusiasmada. E continuei a acompanhar minha cunhada pela
exploração das novidades em matéria de cosméticos. Tínhamos o tempo.
Lá foi minha cunhada, então,
experimentar um novo batom, com um brilho especial para tornar os lábios
mais grossos.E, com atenção quase religiosa, escolhemos as cores que mais se
adequariam à nossa pele e roupa. Tom de rosa para ela e de vermelho-tomate para
mim. Mais um outro pormenor: o lápis do tom do batom. Foi aberto então espaço para a ponta de lápis
colorido nos lábios, antes do brilho propriamente dito.
Ritual cheio de detalhes importantes, todos significativos demais
naquele tempo de transformação em que o feminino flutua entre o divino e o
diabólico, buscando o equilíbrio exato sem romper com as hierarquias e sem
deixar de tocar os mitos mais fecundos.
“Ainda faltava algo...” - confabularam a atendente e a cunhada,
agitadíssimas, olhando para mim, possivelmente percebendo que haviam ganhado o
meu compromisso no ritual - rebelde mais que descrente que eu era no
início... Faltavam o delineador nos
olhos e o blush nas faces. E lá foi a mão delicada riscar as pálpebras nos
lugares certos, desenhando os traços que dariam mais luz aos olhos agora mais
que vivos. No meio da face, alguns toques com o pincel farto. Pronto. A
maquiagem estava completa !
E o espelho não negou. Eu via outra mulher refletida à minha frente.
Olhei-me então de verdade. Estava muito mudada. Era outra quando havia entrado
naquele salão de requinte quase oitocentista (ou seria um laboratório de
alquimia medieval ?).
Havia se formado uma confraria entre três mulheres a serviço do
feminino. Mas agora eu queria mais além dessa experiência de lindeza.
Uma animação vinda de dentro. Uma sensação de euforia me habitava
então. Eu flutuava naquela sensação, ao suspender um tanto a normalidade do dia-a-dia.
E num momento de fantasia, - bêbeda de encantamento.- pela beleza que
me fora presenteada, dei-me também a poesia. Voei até a memória mais próxima de
um homem que um dia se aproximou de mim e me fez sonhar com a possibilidade do
amor. Uma forma de amor, qualquer forma, qualquer amor.
Possível príncipe que ficou no
quase, no intervalo, na pequena diferença,- interstício fundamental para se
atingir o espasmo de vida que conecta com o maior da natureza humana- hoje, ele
tomou da minha mão e fomos.
E fomos tomar vinho (ou era cerveja?) e navegamos no tempo em que as utopias ainda eram
pródigas com a juventude e sonhávamos com um mundo melhor em que não
houvesse sofrimento nenhum, somente contatos bons entre amigos, cidadãos e
governos, pais e filhos, pessoas e amantes.
E fui feliz por receber seus beijos sem perceber o cheiro de cigarro –
e, sem sentir medos da entrega e da
perda de mim. Sem tolher movimentos, em contato com o toque carinhoso.
E ele me ouviu e captou o que eu
quis dizer e entendeu além das palavras que não precisaram ser ditas, pois
antes de proferi-las ele já as tinha ouvido porque partiam do meu coração.
E foi assim sem censura, sem
cheiro, sem dados de dura realidade, espasmo de vida, cúmulo de alegria, em
nome da beleza que eleva moralmente
homens e mulheres em sua humanidade, e em nome da poesia que é mais que
tudo amor, que pudemos receber e dar um ao outro o que é essencial.
E, pulo no escuro, salto no precipício, metáfora da cumplicidade,
intimidade na miséria humana que se transforma em generosidade maior, milagre da
beleza e do amor, pudemos então nos olhar como homem e mulher, sem culpa de ser felizes.
Muito lindo e poético. Adorei todas as metáforas e sua detalhada descrição. Lindo mesmo. V. me perguntou se passei por algo parecido. Não me lembro disso ocorrer desta forma. Sempre fui ligada à estética e sempre, de uma forma ou outra, dava uns toques de maquiagem e até cursos acabei fazendo. Claro, sou designer, artista plástica e pintura para mim é coisa fácil de fazer. O rosto é como uma tela em branco e podemos transformá-lo ao nosso bel prazer e tornarmo-nos, por algumas horas, uma deusa grega, ou diva moderna....Beijos e parabéns!
ResponderExcluirQuerida Suzana, sabia que vc como artista e mulher saberia entender e "conversar" comigo nesta crônica. Obrigada pelos comentários. Bjss
ExcluirBela crônica, Anuska.
ResponderExcluirAcho que todas nós quando transformadas por uma maquiagem nos sentimos melhores, incentivadas a voltar a sonhar. De certa forma, o embelezamento produzido nos transforma no que sempre fomos: deusas poderosas - só nos esquecemos disso.
Bjs