quinta-feira, 1 de outubro de 2015

O MOSTEIRO E O RIO MONDEGO

           
I A PRIMEIRA VISITA: O EDIFÍCIO ÁS MARGENS DO MONDEGO

De longe, avistei uma imagem impressionante: uma grande construção medieval à beira do rio. Aquele edifício não fazia parte das visitas previstas. Mas tive que andar duas centenas de metros para ver de perto. Eu não podia deixar para depois. Eu teria o tempo para essa pequena aventura sem sair do esquema do grupo.

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O chão era seco e arenoso, mas mostrava que as águas do rio tinham tomado conta do espaço, invadindo a construção. As colunas e paredes tinham areia pela metade de sua altura. Me perdi entre elas. Afundei no silêncio daqueles vãos abandonados. Tudo tinha a imponência de um tempo em que o homem conversava com Deus através das construções de suas igrejas. Uma ansiedade tomava meu corpo enquanto minhas pernas percorriam os cantos procurando descobrir algo que ainda estivesse por lá, esquecido. O teto estava muito perto. Tive o desejo de tocá-lo com as mãos. Era como se Deus também estivesse mais perto. Era oração o que me vinha da mente e do coração.

A viagem seguiu seu caminho, mas aqueles instantes permaneceram comigo em delicada lembrança. Com quem eu poderia trocar tais emoções?
 

II A SEGUNDA VISITA: AVIDA DAS MONJAS
 
Foi então que ao voltar à cidade de Coimbra pedi à amiga que me hospedava se ela poderia me indicar como chegar naquele lugar que colara na minha memória. Ela, sem adiantar nada, disse que talvez soubesse a que eu me referia.   

Perto do local, ela foi me passando algumas informações sobre o restauro do Mosteiro de Santa Clara, a Velha. Não mais encontrei a ponte que eu tive que descer ladeando um pedaço íngreme terreno para alcançar o edifício em ruínas. Os pedaços que sobraram na memória daquela visita não passavam de sensações e imagens vagas. Essas antigas peças hoje não mais cabiam lá. Outro jogo do tempo, novo tabuleiro.

Mesmo assim, coração acelerou com ansiedade. A cena ainda era grandiosa. Um terreno imenso, cheio de caminhos por uma grama bem cuidada. O mosteiro que tinha sido recuperado das areias invasoras ficava de um lado, enquanto do outro se avistava o museu. Ao lado do mosteiro, os achados arqueológicos do projeto inicial. Aos poucos fui me inteirando das personagens que deram vida a esse edifício de aparência românica com aspectos góticos em sua arquitetura.

A fundação do Mosteiro de Santa Clara deu-se no final do século XIII, sob influência das ideias de São Francisco de Assis e de Santa Clara. Disputas políticas delongou o processo de sua construção. Somente em 1330, ele foi consagrado pelo bispo de Coimbra, depois de ter contado com a intervenção da Rainha Isabel de Aragão que realizou o projeto do mosteiro e de um hospital com capela e cemitério para os pobres.

Mas, as cheias do rio Mondego se repetiriam muitas vezes o que gerou obras para alteamento do terreno e, no início do século XVII, uma edificação de andar superior. Deixar o andar inferior foi o primeiro passo para o total abandono que ocorreu em 1677 quando houve a mudança para o Mosteiro de Santa Clara, a Nova.


Ao longo do tempo, o rio foi tomando conta dos espaços de todo o conjunto de edifícios e do mosteiro. Os sedimentos acumulados do rio deixavam apenas a parte superior da igreja visível. Foram mais de três séculos nesse desamparo que eu pude testemunhar. Nos anos 90 do séc. XX, o trabalho de restauro do terreno e das construções se organizou.

Um museu de concepção moderna, com cor cinza das paredes e vinho nas ilustrações recebem o visitante com bom gosto e divulgam dados a respeito da vida que havia nesse mosteiro. Há peças que compunham a vida do claustro e painéis com detalhes da vida monástica e de sua relação com a comunidade.

mosteiro_3a_lucas_set15.jpgA arqueologia da clausura e a Regra também foram escavadas. A céu aberto, um painel contava sobre o noviciado e a profissão de fé, de como a noviça renunciava às vaidades mundanas, cortando os cabelos antes de envergar o hábito. Ao ler esse relato, não senti arrepios na coluna. Ao invés disso, me deparei com sensação de afinidade por aquelas jovens que viviam tal escolha. Nem sempre por opção própria, imagino.


Mas, como havia um hospital junto a esse mosteiro, - e a universidade em Portugal estava no início de seu funcionamento -, temos dados sobre como a medicina era exercida naquela época. Um dos painéis dizia que a teoria dos humores e da arte de curar, desde os sécs. V e IV a.c. até o século XVII, eram a base do ensino e da prática da medicina. Os escritos de Hipócrates, Galeno e Avicena imperaram nos estudos médicos da Universidade de Coimbra, e suas obras são debatidas no exame para físico. Não esqueçamos que a função de médico tinha na Idade Média a denominação de físico.

FECHANDO CICLOS


mosteiro_1a_lucas_folheto_set15__edt_.jpgTodas essas informações eram ecos de um passado longínquo, atualizados em um tempo presente que reverencia a memória. Na minha solidão de pesquisadora, amante das narrativas e da história humana, fui encontrando cumplicidade com os dados que me foram oferecidos neste tempo presente. Senti saudades da construção da primeira visita. Mas também como não sentir alegria em ver tudo resgatado? Um paradoxo que pelo visto não terá solução.


Mas fechei um ciclo. Tive uma resposta da vida, conduzida por caminhos impensados. Por isso, juntei as personagens daqueles relatos em um momento de congraçamento: o bispo que consagrou mosteiro, a rainha Santa Dona Isabel de Aragão, Pedro Nunes o médico e astrônomo. Acrescentei ao grupo as monjas e a amiga, por cuja mão retornei ao mosteiro. Tudo em nome da alegria e por agradecimento ao movimento generoso da vida respondendo a perguntas que eu nem tinha feito. Estávamos todos em um mesmo patamar indeterminado daquele mosteiro. Um tempo sem tempo.

      
Ouroboros aconteceu e o começo se encontrou renovado no final. Diferente em muitos aspectos, mas expondo o que permanecera calado nos escondidos dos tempos: um pouco daquelas experiências de vida e de cultura histórica. Na verdade, o tempo parou e se revelou. Um momento de eternidade e de paz.


PS: Visite os links abaixo para mais informações acerca do Mosteiro.
https://www.youtube.com/watch?v=HfDMfZAERh4   Documentário em 6min30, a respeito do Mosteiro e de sua recuperação, por Artur Corte Real, Diretor do Mosteiro. Depois de séculos de abandono e de uma complexa operação arqueológica, o projecto de requalificação de Santa Clara-a-Velha devolve o Mosteiro à cidade de Coimbra. Finalmente aberto ao público.
 
Vídeo de 5min44 de belas imagens e  música de Ennio Morricone: Ave Maria Guarani.
 
 
 

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