segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

A FORÇA DESSAS MULHERES, DE TODAS AS MULHERES


Ilú Obá De Min significa
mãos femininas que tocam tambores para o Rei Xangô
        


foto_menor_3_fev16.JPGNa sexta-feira, 5 de fevereiro, fui conhecer um bloco de carnaval Ilú Obá De Min composto de mulheres e de aspectos da cultura africana. Ainda assisti ao show de Elza Soares. Na praça da República e arredores, o meu povo queria com eles festejar o carnaval e a alegria. Acompanhe essa festa.  



ILÚ OBÁ DE MIN

Eu já vira fotos e já tinha ouvido falar desse bloco, que iniciou em 2004 a partir de um grupo de arte e cultura negras. E ele cresceu.

Hoje além do bloco, é instituição que desenvolve atividades de formação e pesquisa sobre a matriz africana, sem ligação com religiosidade mas com o foco nas histórias dessa cultura. Também se preocupa com as questões femininas e, a partir da arte, tem como objetivo o empoderamento da mulher, o enfrentamento do racismo, sexismo e de todo tipo de discriminação. Ele busca inserir nos espaços urbanos antigas tradições restabelecendo o contato da população com elas. E surge, então, a importância do carnaval de rua, com um desenho diferente e especial, pois a rua é o local privilegiado para essa e todas as aproximações.

O bloco se constitui de várias alas. Há a bateria composta de duzentas e cinquenta mulheres que tocam instrumentos variados: alfaia (uma espécie de tambor), agogô, djembê, xequerê. E há outras alas, como o corpo de baile, o ayê, que representa uma corte em desfile, na verdade uma corte africana de reis e rainhas. E há ainda os incríveis pernas-de-pau que não se relacionam com os circenses como nós os conhecemos. Eles são uma tradição na cultura africana, chamados orun (céu) e representam forças de planos superiores. Garantem com esse contato divino que as cerimônias atinjam outra magnitude.

Nesse contexto incluem-se reflexões sobre a identidade da cultura brasileira. Quem poderá se esquecer da contribuição enriquecedora da tradição africana em nossa cultura e história? Com a presença desse grupo Ilú Obá De Min poderemos até nos perdoar da tristeza infringida à população de escravos que aqui chegaram? Talvez isso não seja possível. Mas essa marca histórica será alimento para a nova postura de mulheres encarregadas pela natureza de fazer a roda da vida acontecer cada vez de forma mais livre de máculas. E a postura das mulheres do Ilú fala de novas experiências e de novos horizontes possíveis. E de respeito ao novo que restaura o que deve ser lembrado. O que não pode ser esquecido.
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Nesse propósito de reverência, a cada ano, o bloco homenageia uma mulher com presença na cultura e arte brasileiras. Este ano a escolhida foi Elza Soares. A voz rouca e forte da artista que ganhou da BBC de Londres o prêmio de Cantora do milênio em 2000, lançou no ano passado um álbum denominado A Mulher do fim do mundo. Os principais temas desse álbum são a violência contra a mulher, a negritude, a morte, o sexo. As letras das músicas inéditas cantam esses temas que são o discurso compatível ao do bloco. Suas falas e cantos afoguearam os presentes daquela festa. 

A faixa que dá título ao álbum junto a um trabalho de percussão nos embalou na praça com letra exaltando o carnaval e a avenida, o samba e a dor da vida. Aos 78 anos de idade, Elza Soares sabe ser a metáfora de toda a grandeza feminina e africana. Um limite ampliado de espacialidade, a mulher do fim do mundo.

A RAIZ AFRICANA DESSAS MULHERES

Cheguei à praça munida de guarda-chuva e coragem para enfrentar uma quantidade inesperada de pessoas se espremendo pelas calçadas e ruas do centro da cidade. O sistema de previsão climática não errou. A chuva veio fina e persistente. Mas quem se importa?

Antes de ela chegar, eu pude observar desde a saída do metrô da praça as pessoas com turbantes coloridos e roupas em branco e vermelho que são as cores de Xangô. Esse orixá é lembrado desde o nome do bloco. Ilú Obá De Min significa mãos femininas que tocam tambores para o Rei Xangô. Eu também me vestira de branco vermelho.

Pus-me na praça e vi aumentar o número de mulheres se posicionando na bateria. De calça branca, blusa listrada de branco e vermelho, chapéu de malandro e flor também vermelha no colo. A maquiagem e brilhos faziam parte da beleza e da festa. Era carnaval.
     
Quando o bloco de deslocou para a avenida, presenciei o desfile da música com tambores em ritmos variados e cantos multiplicados pelas vozes presentes. Eu me integrei na melodia construída junto a um cenário, coreografia que este ano vestiu o figurino carioquês da Elza Soares: a malandragem e o samba.

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Acompanhei a saída das alas. O corpo de baile, cantoras e brincantes. Meus olhos com enlevo, não desgrudaram da realeza da corte. Bem de baixo, segui os pernas-de-pau com desejos de alçar um vôo para alcançar seus sorrisos. Os ritmos mexiam com meus nervos e músculos. Dançar era o mínimo necessário naquele momento. Eram sons fortes os que enchiam o espaço e que contavam histórias subentendidas. Pela boca de mulheres contemporâneas eu soube das dores de outras mulheres negras. Só que essas vozes ganharam o dom de tornar o antigo atual, o distante próximo. E as dores se transformaram em cantos de revolta e de libertação, de esperança e de transformação.

Era um movimento de mulheres no carnaval brasileiro. Fortes e presentes. Naquele momento eram todas negras.

Inevitável que em todo esse quadro, algo ocorresse em mim. Não seria possível que eu saísse de lá mais mulher pela história de minha vida de corpo e de sexo.
Mas, sem dúvida, saí de lá mais negra, mais África, mais forte. Na pele e no coração.

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Quebrei a cara e me livrei
Do resto dessa vida
Na avenida dura até o fim
Mulher do fim do mundo
Eu sou e vou até o fim cantar.
A mulher do fim do mundo, 
Elza Soares



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