segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

SÃO LUIZ DO PARAITINGA DAS MARCHINHAS


                                           ​Para Isabel Giannotti, grande companheira de viagem

Encravada entre vãos de montanhas próximas ao Vale do Paraíba, um pequeno vilarejo encanta o viajante. Ela se localiza no Estado de São Paulo, mas poderia ser em qualquer lugar do Brasil, variando apenas o sotaque. Aqui, bem caipira. Bem lindo. Se você é turista, dispa-se dos aparatos urbanos e mergulhe comigo na cultura local.

DE MARCHINHAS E OUTRAS MARAVILHAS
SLP_1_menor_tamanho_jan16.jpgEram poucos os dias disponíveis; o trajeto teria que ser curto. O destino já vinha acompanhado de alguma informação: carnaval com toques particulares. Em janeiro, o site da cidade informava um concurso de marchinhas em três finais de semana. Programação perfeita.
Foi bom chegar na sexta e acompanhar o ensaio espontâneo de quem quisesse cantar com a banda no coreto da praça ainda não cheia de gente. A brisa pelo ar e folhagens das árvores poderia ser de chuva próxima?

O melhor viria no dia seguinte. Haveria os blocos pelas ruas em volta da praça e a apresentação de dez marchinhas no festival que é, na verdade, repertório futuro do próximo carnaval.


Mas antes disso, vejamos as personagens da cidade. O médico sanitarista Oswaldo Cruz ganhou um pequeno museu na casa em que nasceu. O músico e compositor Elpídio dos Santos também merece amostragem de seu trabalho. O geógrafo e professor Aziz Ab'Saberz é outra de suas personagens ilustres. Celebrar personagens e suas obras não faz parte da nossa cultura. O que mais havia naquela cidade de pouco mais de 10 000 habitantes?


SLP_2_menor_tamanho_jan16.jpg
Livros grandes de capa dura ilustrados informam o visitante a respeito da história local e de particularidades recentes como a inundação em janeiro de 2010. Tal experiência dramática se acrescenta às histórias dos ciclos de riqueza que a cidade viveu por causa da circulação de mercadorias já que sua localização é providencial, entre o Vale do Paraíba e o porto de Ubatuba (importante durante os séculos XVIII e XIX). Também era caminho para o escoamento do ouro das Minas Gerais, era entreposto de tropeiros e, um pouco mais tarde, ainda foi posto de abastecimento de produtos básicos como milho, feijão, arroz, fumo. Era o celeiro do vale.


Até que com a chegada do café já no século XIX surgiu uma nova classe social, a elite dos senhores do café, da política e até da cultura literária. Com o final do ciclo do café que foi para o sertão de São Paulo, aconteceu um ciclo de comércio e uma redução da economia. Já no início do XX, aconteceu a pecuária leiteira. Atualmente, a cidade recebeu o título de estância turística desde 2002.


O que chama nossa atenção é a rápida superação da inundação do rio que nos remete, com certeza, a um conjunto de muitas forças. Depois de seis anos, a reconstrução da cidade chega a quase noventa por cento.


Mas mais bonito ainda é a manutenção de suas manifestações de cultura popular e folclórica pela população. Quem saberia contar essa parte? Ela gerou ao longo do tempo uma série de blocos e de marchinhas, de festas pagãs e religiosas.


São mantidas vivas danças como a congada, a catira, a caiapó e a dança das fitas. Rituais como a cavalhada a congada e moçambique. Festejam-se a folia de Reis e a festa do Divino. Lambuzar-se de tudo isso nunca será demais.


O carnaval esteve um tempo suspenso por proibição religiosa. Quando pôde reaparecer no início da década de 80, a demanda reprimida devia ser grande, pois ele renasceu forte. Logo vieram o casal João Paulino e Maria Angu, dois bonecos enormes e outros. E os blocos, a começar pelo Encuca a Cuca, que é uma personagem sobrenatural e meio mágica para desencaixar a cabeça das pessoas. Um carnaval inteligente cheio de mitos, lendas e personagens, de teor irônico e conteúdo crítico.
A PONTE E AS SERESTAS
De posse dessas informações segui para as ruas da cidade com outros olhos. No dia seguinte, no sábado à tarde, segui os blocos Burrico do Vovô e o bloco da Minhoquinha, ambos com banda, pessoas fantasiadas, bonecos enormes e o estandarte abre-alas.


       
SLP_4_menor_tamanho_jan16.jpgÀ noite, a praça se enfeitou de fitas, máscaras e luzes. Era muita gente, famílias com muitas crianças e grupos de jovens esperando a apresentação de dez marchinhas marcada para as nove e meia da noite. Mas só começou perto das dez e meia porque foi a hora que acabou um casamento na igreja matriz em frente ao palco no coreto da praça. A festa pagã cedeu lugar ao respeito pela religiosidade. Como visitante da cidade acomodei-me ao costume do lugar. Fiquei pacientemente esperando a cerimônia acabar.


Essa particularidade regional (falta de profissionalismo?) devia fazer parte de um quadro maior em que talvez caibam os critérios próprios de sobrevivência dessa população. Ela passara por destruição e caos. Quem pode avaliar a importância da fé? Ou a resistência do pároco? Não cabia crítica, mas fiquei curiosa. Talvez houvesse coisas que eu ainda não havia percebido.

O capítulo da inundação é marca da capacidade de resistência. Mas, suponho também que essa cultura popular é um caldo que sustenta a manifestação desse povo. A incorporação desse repertório pode ter sido alimento para a capacidade de superação do desastre das águas. Havia muito mais a preservar do que o patrimônio visível e concreto das construções. Deve haver um orgulho escondido em todos os habitantes, uma marca do heroico fundamentado no quadro das manifestações culturais.


Daí então, a partir dessa hipótese, segui o festival com outros ouvidos. As marchinhas vinham de várias localidades muitas vezes acompanhadas por torcida organizada. Iniciado em 1984, ele segue seu objetivo de divulgação e manutenção de uma tradição local.


Saí da festa antes da seresta começar pelas ruas da cidade. Pena. Era tarde da noite e começara uma chuva fina. Faltou essa experiência.


No meio do caminho tinha uma ponte branca de pedestres. Ela separava a parte histórica do lado de lá. Era estreita e iluminada por postes altos, sobre aquele rio que um dia enchera demais ocupando mais espaços do que lhe cabia. Passando por cada um dos postes eu ia ouvindo sons de serestas. Como todas as serestas são igualmente lindas, as recordações de outras de outros tempos, da minha saudade, se juntaram à desta noite.

Outros fragmentos desta viagem iam surgindo entre os sons que eu parecia ouvir. Eles se encheram de águas do rio Paraitinga e de sotaque caipira. Havia marchinhas de carnaval e bonecos gigantes. Havia uma igreja na praça se erguendo branca e respeitosamente deitando sua sombra sobre a praça e o coreto. Nas barraquinhas havia roupas feitas de panos quadriculados em amarelo, azul e vermelho e outras com bordados de miçangas. Havia sorvete de frutas e queijo especial com café.


E esses recortes se alinhavam com a visão insistente da ponte pequena para pedestres sobre um rio que tinha afogado a cidade. Como se ela representasse um limite que eu não queria ultrapassar.


A máquina fotográfica procurou gravar cada pedaço do trajeto percorrido pela última vez até a pousada gentil. Mas, era um andar que carregava a sensação de ter perdido talvez o melhor da festa: a caminhada noturna pelas ruas com violões e vozes emocionadas. Algo de mim ficaria em alguma nota de violão perdida pelo ar fresco da noite ou na voz de um cantador apaixonado ou ainda no olhar de uma moça que da janela vê o amor e a música no portão de sua casa.


Não adiantava tentar resgatar. Nem eu queria. Nem sequer eu poderia.
PS 1 :Em São Luiz do Paraitinga, Pousada Primavera:

Nenhum comentário:

Postar um comentário