sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

O JOGO ENTRE DOIS INSTINTOS

O JOGO ENTRE DOIS INSTINTOS

O filme Mil vezes boa noite tem Juliette Binoche no papel principal e muitos outros motivos que o tornam especial. Boa fotografia, um repertório de situações interessantes: vocação, ideais sociais, conflito entre família e trabalho, beleza. É daqueles filmes que nos alimentam com boas razões para pensar. Leia a seguir.

VOCAÇÃO OU FAMÍLIA

O trabalho do fotógrafo John Christian Rosenlund e a direção competente de Erik Poppe (2013), nos contam a história de u

ma prestigiada fotógrafa de zonas de guerra (Rebecca) e sua relação com marido e duas filhas. O conflito ocorre por que a família não suporta mais a sensação de tê-la sempre em situações de perigo.

A personagem central se divide entre a denúncia dos males do mundo e o amor da família. Certo? Não. Se fosse simples assim, não seria o grande filme que é. Ele vai além de qualquer simplificação. Senão vejamos os detalhes da complexidade da narrativa.

O filme inicia em uma belíssima sequencia em que Rebecca, testemunha de uma ação de terrorismo, quase morre. Isso gera uma reação do marido que não aceita mais esse tipo de vida da esposa, nem as filhas aceitam a distância da mãe. Daí, em uma tentativa honesta, a personagem decide assumir suas funções na família. A relação com o marido se restabelece. A filha mais velha Stephie descobre algumas afinidades existentes entre elas, o que promove a aproximação.

Mas logo, outra circunstância põe tudo a perder. E a ambiguidade se instala. Rebecca entra novamente em conflitos e com a máquina de fotografia na mão se abre ao perigo, voltando ao comportamento que prometera não repetir. E a separação se instala novamente na família. O evento que vive com a filha na África faz que seu marido de novo se afaste dela e desta vez de forma mais radical.

O que faltou para ela manter a postura e palavra assumidas? A definição ou não dessa resposta é parte inteligente da trama, talvez seja seu verdadeiro núcleo.

INSTINTOS EM JOGO

A nova circunstância vivida junto à filha mais velha conduz Rebecca a um segundo momento de questionamento. A motivação de sua ação profissional confessada em primeira instância era social e política. Mas, a filha Stephie lhe pergunta por que ela se coloca em situações assim.  A resposta traz nova versão: “É só instinto, você vai indo, não é por pensar.” 

Será que ela mente quando diz que o mundo precisa de sua denúncia e que quer que as pessoas engasguem ao café da manhã ao ver suas fotos no jornal? Ela não mente, sua indignação pode ser real. Mas essa talvez seja apenas parte da verdade. Há mais em jogo.

A segunda confissão admite que há algo dentro de si sobre o qual ela não tem controle; algo de que não pode fugir por ser pulsão instintiva. Um impasse está criado. Então, como sair dessa situação?

Mas a sequencia narrativa ainda guarda outra surpresa para nós. Ela retorna ao trabalho em Cabul, no mesmo local que inicia o filme. Só que desta vez é diferente. Fica aflita, descontrolada e se desespera ao ver uma adolescente em preparação para o sacrifício terrorista. Por vezes, ela levanta a máquina, mas não faz o clique. Sucumbindo, ela se ajoelha ao chão, entregue à dor e angústia, semelhante à da mulher que está a seu lado, que poderia ser a mãe da adolescente que vai se imolar.

A cena se fecha. Não há outras definições que nos indiquem o que vem depois. Sem uma conclusão, devemos decidir por nossa conta o que aconteceria com Rebecca daí em diante. Várias interpretações são possíveis.

Minha hipótese é que nesse momento ela vive uma dor maior. Pela segunda vez, foi refeito o vínculo materno com ambas as filhas. Seu instinto materno está forte e vivo.  Ele é sacudido intensamente nessa cena.

Daí em diante ela teria condições para deixar de fotografar cenas de guerra.  Somente outro instinto tão forte como o materno poderia promover uma mudança radical a ponto de ela superar seu instinto agressivo. Mas, isso é apenas uma hipótese. 

Só podemos contar com o que a narrativa do filme nos oferece. Ela não oferece soluções, mas somente imagens e metáforas com que podemos dimensionar a crise da personagem.

METÁFORAS E SIGNIFICADOS

Como o filme é econômico nos diálogos, podemos imaginar o tamanho de tal crise a partir de imagens que ganham lugar na representação de sentidos.

Assim, há longas cenas em que ela é vista sozinha no banheiro, olhando a própria mão, ou junto à janela ou ainda passando a mão por panos. Tais belas imagens nos falam de solidão reflexiva e de introversão.

Há também um sonho recorrente em que um corpo feminino bóia na água de cabeça para baixo. Essa imagem nos conduz a uma carta do tarô, o enforcado, presente no imaginário popular. É inevitável essa associação e rica a interpretação que nos traz as ideias de sacrifício e de destino. Nada mais coerente em relação ao que Rebecca vive: uma crise a leva a decisões que implicam em sacrifícios. Há desejos de defender ideais sociais e o destino escolhido de ter uma família. E há também os impulsos instintivos e incontroláveis de sua natureza assumidamente guerreira.

Essa é uma das grandezas do filme: o retrato de um dilema pessoal, a experiência biográfica de escolhas particulares e difíceis.

Embora as cenas inicial e final já valham a ida ao cinema, todo o filme é construído nos limites entre a beleza da arte e o trágico mistério da vida. Há um olho que busca no escuro, amedrontado e em alerta, arregalado procurando a luz. Há uma máquina fotográfica pronta a clicar sempre, na observação da realidade. E há a natureza humana em sua complexidade.

Rebeca confessou a sua filha que teria sido “muito brava quando jovem, tendo a fotografia como salvação”, mais velha sua história sofreria uma grande  mudança, mas a busca pela salvação continua atual.

Mais velha, trata-se de outra salvação. A natureza humana sempre busca salvar-se perante a complexidade da vida. Como resolver esse dilema?


Para saber mais sobre Tarô, recomendo o site de Constantino Riemma

2 comentários:

  1. Gostei muito da sua análise ! E fico cada vez mais impressionado com a incompetência da crítica de cinema no Brasil. Um filme dessa categoria passa desapercebido. E quando há alguma crítica, é toda voltada para os "defeitos" da obra. Não se fala do incrível trabalho da fotógrafa e nem da importância política que a fotografia pode adquirir até para a mudança dos rumos dessas guerras tão selvagens . a "revelação " muda os rumos do conflito. E é por isso que suas fotos são censuradas. A fotografia pode salvar a fotógrafa e, também, milhares de outras vidas !

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  2. Amiga, escrevi um enorme comentário e ele foi apagado. Não é a primeira vez que isto acontece com este blogger... Outra hora escrevo novamente. Estou muito aborrecida com isso. Beijo

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