segunda-feira, 29 de junho de 2015

RELATOS SELVAGENS, O FILME

O filme se compõe de um conjunto de histórias sem ligação entre si. Porém, há um fio que as une e que é quase óbvio: o lado selvagem da natureza humana. Além disso, todas levam a marca de certo tipo de humor. O filme traz complexidades, riqueza de detalhes, muita ironia e surpresas que nos desconcertam. Difícil e importante: identificado onde mora o perigo, como lidar com ele?



uma história e mais cinco

São seis histórias que falam do lado instintivo e selvagem de nossa natureza. O filme conta com a correta direção de Damián Szifron e com a produção dos irmãos Almodóvar, Pedro e Agustín. Encontramos nelas o cômico e o trágico permeando os seis relatos, talvez um sinal da escola espanhola de humor. Mas, tudo isso é só artifício. Pelo absurdo, algumas situações são quase caricaturas. Dizem outra coisa, às avessas, mais do que parece. Elas têm valor metafórico.

Antes da apresentação do filme, temos uma delas: uma vingança junta todos os personagens em uma viagem de avião com destino para a morte. Outras duas pessoas em terra (supostamente os pais do culpado) também são atingidas. A narrativa é curta e foi colocada no início intencionalmente. De certa forma somos incluídos como protagonistas pela forma como a cena é construída.

Daí em diante, assistimos a uma série de situações em que as emoções de raiva, frustração e impotência ultrapassam os limites do bom senso de maneiras variadas, mas com o mesmo humor ácido e clima de susto.

A primeira nos conta sobre um acerto de contas. Duas funcionárias de uma lanchonete se deparam com o passado. Uma delas é diretamente envolvida, mas é a outra também em débito que se encarrega de finalizar o acerto. Na verdade, essa justiceira se sente melhor na prisão do que na sociedade. Talvez lá ela esteja a salvo dos males com que não pode pactuar. Foi fácil ter a decisão e a faca nas mãos.

A segunda nos mostra dois motoristas em uma estrada e uma fala impensada que conduz os dois a acessos de fúria, cada um à sua vez. Ambos morrem carbonizados. Final absurdo? Sem dúvida. Mas, também cômico.

No terceiro episódio, um engenheiro especialista em implosões se depara com questões urbanas e burocráticas. Não suporta pressões, vive reveses pessoais e profissionais e é preso. Mas, acaba sendo levado ao papel de herói, por servir de porta-voz à coletividade, mobilizada pelas redes sociais. Há vazão de uma demanda reprimida. Na verdade, há a criação de um anti-herói que restaura a moral de todos os que se consideram injustiçados pela máquina do Estado.

No quarto, o filho de uma família rica se envolve em um atropelamento com morte e daí em diante assistimos ao desenvolvimento da corrupção mobilizada pelo pai, advogado e autoridades envolvidas. Mas, quem paga a conta é o elo mais fraco do sistema social. Esta história é a menos cômica, mas nos traz temas que estão a nossa volta como as outras.

E a última história nos traz a traição, a hipocrisia social e a família com seus trejeitos. Uma festa de casamento é o local ideal para o desmascaramento destas questões e ainda assistimos a um happy end insuspeitado.

Tudo é forjado na cinematografia, como em todo o tipo de arte. Os recursos e sua linguagem mediam a conversa entre o autor e seu público. Qual seria a intenção do diretor a partir destas histórias?   

O lado selvagem da natureza humana

A leitura que faço do filme está ligada a um aspecto da natureza humana em situações de pressão. Em todas as histórias, há a ultrapassagem de um limite. Os critérios de convivência social são perdidos e/ou abandonados. As estruturas que sustentam tal convivência se rompem. As defesas são postas abaixo, os comportamentos se liberam dessas estruturas, e andam por outros parâmetros que não são os da realidade ordinária. O que poderíamos chamar de racionalidade, sai da órbita de controle.  Lá está um espaço de intensidade além dos limites possíveis ao ego.

E descobre-se o que está mais além, o lado irracional, o instintivo ou o amoral que habita além das convenções sociais. O selvagem que habita o nosso lado escondido é revelado de forma trágica e cômica, ás vezes beirando o absurdo. Manifestam-se as camadas profundas do indivíduo.


Onde se pode chegar em uma situação de pressão? Em três histórias o limite é a morte. Os toques de humor não diminuem o impacto que elas promovem por causa do nível de violência mais ou menos explícito. Em duas delas há um suposto final feliz.  E ironia. O amor poderá vencer a hipocrisia na história do casamento? A consagração do anti-herói na coletividade eliminará a repetição da insatisfação que foi a causa deflagradora da história? Nesses casos temos, na verdade, apenas a resolução dos conflitos de forma um tanto patética com abrandamento do clima na narrativa. Um tostão de alívio.


A partir dessa coleção de relatos, podemos refletir sobre as possibilidades de rompimento dos critérios de convivência social. Não parece haver solução que nos salve dos perigos que nos rondam o tempo todo. Perante a sensação de impotência, a injustiça, a raiva estamos sempre à beira do descontrole e da perda de consciência.    

O recado pode ser mais ou menos esse: na convivência social a sanidade e loucura andam lado a lado, separadas por um fio. Pelas pressões a que estamos sujeitos na vida somos afeitos a uma ordem sem moral sob o comando da natureza instintiva. Cabe a advertência para nossa reflexão, pois é melhor sabermos onde mora o perigo, para podermos lidar com ele.

Lúcido e desconcertante, o filme nos faz pensar a respeito de temas presentes em nossas vidas: a vingança e a injustiça, os motivos e comportamentos reles que movimentam os preconceitos sociais, a impotência perante a máquina do Estado, a corrupção na sociedade privada e pública, as relações entre os sexos e a família. E revela uma parte de nossa natureza que não é fácil de aceitar e ainda é difícil de administrar individual e socialmente.

O filme é tão envolvente que nos esquecemos da belíssima seleção de fotos de animais que serve de pano de fundo para a apresentação dos informes iniciais do filme. Tais animais são o espelho daquela parte de nós que escondemos ou preferimos não aceitar. Só que os animais vivem como devem, lutando pela sobrevivência. É sua sina. Nós recebemos a linguagem e a consciência que nos conduzem a outras dimensões de compreensão. Temos outras demandas da vida. Cada vez que ultrapassarmos os limites de nossa humanidade estaremos rompendo também nossos compromissos com tais privilégios. Por mais justo que nos pareçam os argumentos para tais atitudes. Como lidar com isso sem que nos percamos em terrenos que não nos cabem? Como ele abre espaço para reflexão, que o filme nos sirva de aviso.    


Um comentário:

  1. Civilização é repressão ! Impossível a convivência sem o estabelecimento de regras. Nos dias atuais há a sensação de que não conseguimos mais conter "os animais que nos habitam ". Mera impressão ou realidade global ? Adorei sua análise do filme. Bjs !

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