sexta-feira, 15 de agosto de 2014

A PRIMEIRA SALA


 Eu já vinha trabalhando há algum tempo como astróloga e atendia as pessoas em minha casa, em seu escritório ou residência. Mas esse arranjo não era ideal, pois havia empregados, filhos, telefonemas a interromper a leitura do mapa. O incômodo acabava sempre acontecendo.  Uma sala adequada se fazia urgente.

E ela veio por indicação de uma amiga. Um psicólogo, amigo seu, tinha períodos livres no seu espaço. Coisas cruzadas, coisas boas. Eu ficaria com as sextas-feiras e as manhãs dos outros dias da semana. A sala era pequena, no piso de cima, ao fundo do corredor comprido.

Tratava-se de um consultório em uma casa grande de dois pisos e uma edícula no fundo do terreno. Lá cabiam uma clínica médica e odontológica, fonoaudiólogas, psicólogas, professora de inglês e esteticista. Cheguei me sentindo, a princípio, estranha num ninho que não era o meu. Fiquei nessa casa, que ganhou significados na minha história profissional, por cerca de quatro anos, que foram importantes por muitos motivos, mas principalmente para o estabelecimento de uma rotina de atendimento.

Cerca de um ano depois de estar nesse espaço cedido parcialmente, tive um momento especial quando surgiu a oportunidade de ter uma sala só minha. Ela era mais ampla e ficava no piso de baixo, ao fundo. Tinha uma janela para um pequeno jardim que era cuidado pelas psicólogas que ocupavam as salas da edícula localizada atrás dele.

Ao longo dos anos eu sabia das folhas verdes de setembro e de outubro e da falta delas no meio do ano.  Às vezes, via o jardineiro mexer na grama, que não crescia e nos pequenos arbustos irregulares que pareciam não vingar. Havia  maria-sem-vergonha, que insistia em brotar mesmo após ser eliminada. Recorrência feliz de vida.

E havia aquela árvore que, embora pequena, era um brinde para meus olhos e cujos galhos, longe de serem frondosos, quase avançavam para dentro da minha janela dando a impressão de serem bem maiores do que eram.

Ela me agradava e passou a me preocupar depois que ouvi do jardineiro encarregado algo que me soou perigo, como se indicasse uma vontade ou intenção de tirá-la de lá. Era opinião de profissional, tá certo. Mas, sua fala dizia: "Muita sombra para as outras flores".  Pensei: “Flores ?! Onde ?” valeria o sacrifício da árvore por causa daquelas espécies tão caseiras e sem gabarito? Não eram tantas, que justificassem o sacrifício da minha árvore. Seria ela arrancada?

Era como se eu tivesse estabelecido um critério de valor para justificar meu medo pela possibilidade de uma decisão que eu não poderia evitar. Afinal a vista do jardim era minha, só isso, mais o galho que sempre estava próximo da minha janela e o soprar dos ventos em suas folhas. Aquele barulho ninguém jamais poderia adivinhar. Como perder isso tudo?   

E havia também o som da igreja do bairro pautando o tempo. Ao final da tarde  um arranjo especial de sinos anunciava as seis badaladas das horas. Alguns clientes, quando voltavam, diziam desses sons que a gravação da fita registrara. Eu me enchia de satisfação por saber que meus clientes iam embora, ouviam as fitas e ainda marcavam esses sons dos sinos.

Outra música surgia, às vezes, quando alguém repetia não muito disciplinadamente sequências de sons num saxofone. Na distância, sopro, metálica saudade e plangência. Quem mais na vizinhança se deixou levar pelo encompridado das notas? Mas esse concerto precário de um jazz sem regularidade não durou muito tempo. 

Esses privilégios acabaram quando tive que desocupar esse espaço que nem parecia estar na Rua Frei Caneca, distante apenas duas quadras da Avenida Paulista. A casa foi vendida e desocupada. Um tempo depois, passando por lá vi tratores enormes aparando o terreno. Uma terra muito vermelha aparecia. Estava embaixo daquela construção velha, que desapareceu. Embaixo da minha árvore.

Foi assim minha primeira sala, com pequenos detalhes que ainda me falam de saudade. Tinha um cheiro de jardim e um som de sinos.  Um ambiente propício para receber os clientes que me visitaram naquela época. Era o início da minha carreira e tudo combinava com os símbolos astrológicos que estavam frescos para mim.

Sobrou o som dos sinos nas fitas gravadas. As notas entristecidas de um saxofone brilhante nos meus ouvidos e os galhos da árvore na janela da minha memória.  Eu nunca fui visitar a igreja de onde provinha aquele som litúrgico interminável. A árvore não saiu de lá, ao menos enquanto eu fui dona daquela janela, que valia pelo galho entrando por ela.  

Ainda hoje ouço as badaladas da igreja marcando as horas e os acordes do músico que tinha minha companhia sem saber. Ainda guardo o horizonte enorme que minha árvore inaugurava todos os dias. 

2 comentários:

  1. Ana, estou prestes a ter a experiência da minha primeira sala. Adorei seu texto, pois estou sensível a tudo que gira em torno das primeiras experiências

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  2. Que bonito... Quanta sensibilidade e saudade... Belíssimo...
    Um beijo.

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