quarta-feira, 16 de julho de 2014

A BELEZA EM FELLINI E PAOLO SORRENTINO


O artista plástico Bartolomeo Gelpi, em palestra a respeito do filme A Grande Beleza de Paolo Sorrentino, disse ter saído do cinema com a impressão de que havia visto uma obra prima.  Guardei o mote sugerido por esse depoimento. Sem pretensões de concluir o assunto, convido você a responder à pergunta antes de ler o texto abaixo: por que esse filme seria uma obra-prima? E esse filme ainda nos incita a outra questão. Pelas entrevistas do diretor e pela observação, podemos estabelecer uma relação desse filme com La Dolce Vita de Fellini. Como e a partir de que dados?  

O começo, o BÁSICO
A relação entre os dois filmes pode se alongar por vários aspectos, mas ela começa na parecença entre os dois protagonistas e no amor pela cidade de Roma. Paolo Sorrentino (2013) parece ter cunhado sua personagem Jep Gambardella, à luz de Marcelo de Fellini (1960).  Ambas sofrem de mal parecido, de uma insatisfação mansa. Uma mesma profissão lhes oferece um trânsito fácil pela alta sociedade italiana entregue a noitadas, em meio a decadência e alienação moral, imersa em vazio e relações fúteis. Os dois parecem apenas acomodados com essa opção de vida.

Notamos também o mesmo amor pela cidade que explode na tela generosamente  em toda a grandeza de sua arte.  Poderíamos até afirmar que Roma divide o protagonismo dos filmes com as personagens. Há outros aspectos que mereceriam atenção como a forte presença da Igreja e a crítica à sociedade italiana em ambos; e ainda outros dependentes do contexto de cada uma das fases históricas dessas encenações separadas entre si por mais de cinquenta anos. Mas há mais.

Buscas
Os dois personagens demonstram uma inquietação que acaba gerando buscas pessoais.  A de Marcelo poderia ter sido desenvolvida a partir do contato com um amigo, a quem ele pede ajuda, por acreditar que ele possui o segredo de ser feliz.

Em um diálogo a respeito de um quadro de Giorgio Morandi, (pintor italiano, 1890-1964) o amigo Steiner, conversando com ele, diz que “Em uma arte nada ocorre por acaso.” E continua assim, “Deveríamos nos libertar de paixões e sentimentos na harmonia da obra de Arte realizada. Naquela ordem encantada, conseguiríamos nos amar tanto e vivermos soltos, além do tempo. Soltos. Soltos.” 

Para Steiner, a perspectiva da existência é uma prisão em que imperam o caos e as paixões que conduzem à ausência de harmonia. Por isso, ela é desencantada e sem sentido. Somente a arte poderia trazer a ordem, a felicidade e a liberdade. Quando esse amigo se suicida sem explicação, Marcelo é devolvido à desesperança.

Por sua vez, Jep faz sua caminhada elegante até que a morte de seu primeiro amor o move a uma perspectiva diferente das coisas. Apresenta então sinais de mudança e até um anseio de cunho religioso ou espiritual, que se demonstra inútil tendo em vista a fragilidade da pessoa da Igreja a quem ele dirigiu sua dúvida.

O primeiro acaba sua trajetória em uma praia com um grupo após uma noitada, nada tendo mudado para ele. Mas, para Jep se não houve resposta à dúvida espiritual, ainda sobra uma promessa de renovação. Há no ar um sorriso final e uma possibilidade de retomada de sua vocação.

Seria fácil, precipitada e até destemida a conclusão de que Fellini tem uma visão pessimista da existência. Talvez sim. Mas seria irresponsável concluir assim tão ligeiramente. Uma análise mais completa poderia explicar detalhes da questão, o que não cabe neste momento.

Seria também difícil definir um motivo que fosse conclusivo para as mudanças de Jep e de sua decisão final. Observamos sinais dos efeitos dessa mudança a partir de suas palavras. À pergunta “ Por que não mais escreveu um livro?” ele responde: “Por não ter encontrado a grande beleza”. Preferiu permanecer mudo. Mas sabendo-se vocacionado à sensibilidade, essa postura não deve ter ser fácil, também por estar em contato contínuo com expressões múltiplas da arte. Ter mudado a decisão, propondo-se possivelmente  a retomar sua vocação, será um índice de que encontrou a grande beleza?

OBRA-PRIMA
A questão estética perpassa sutilmente os dois filmes, como se pensar a vida junto da experiência da arte possibilitasse o alargamento do horizonte, para além da futilidade alienante e de uma vida que aprisiona. Para Marcelo a harmonia através da arte, que seria promessa de felicidade, tornou-se impossível. A obra de Fellini ainda é atual após cerca de cinquenta anos e guarda características de uma obra prima. Mas o destino de sua personagem é fraudado e ele se distrai de sua busca. Não há salvação para Marcelo.

Jep tem sorte diferente. A visão de um navio naufragado após a morte de Ramona e uma série de acontecimentos na vida das pessoas a sua volta, tudo isso talvez lhe tenha indicado a necessidade de uma resolução pessoal.

Nada é explícito. Há um namoro com o imponderável em ruptura com a lógica, um conluio com a imaginação. A estranheza vai abrindo campo para nova interpretação. Ler nas entrelinhas é essencial. E a arte é o veículo para desvendar esse percurso.

Jep talvez perceba alternativas para a grande beleza que não chegou a encontrar. Pontualmente, para ele há outras possibilidades nas aberturas de sua fantasia netuniana. Um teto que se abre em mar, uma revoada de pássaros ao sopro da santidade, uma freirinha que brinca com crianças ou colhe frutos, uma coleção de chaves que abrem tesouros. 

São vestígios do belo misturados às percepções do dia-a-dia. São sinais que se espalham por tudo e que podem ser alívio para a devastação de uma vida sem sentido invadida por um palavrório mundano e frívolo. Algo maior acontece quando ele anda reflexivo pelo cais do rio ou contempla pequenos gestos, como a cena de beijo entre namorados ou as formas das esculturas e as luzes-sombras de pinturas. A reflexão cria, desenha sentido, constrói corpo e alma. Nessa experiência concreta há incorporação de um valor ou de uma essência intemporal porque gera contato e harmonia.   

A questão estética permanece como um pano de fundo implícito suportando os dramas emocionais e existenciais da personagem. O título escolhido por Paulo Sorrentino para seu filme nos conduz desde o princípio para essa leitura.

A sensibilidade de Jep talvez tenha conservado em latência sua busca pela grande beleza. Essa ausência foi mantida em aberto. Até que algo o impulsionou à frente. E talvez ele tenha encontrado a resposta em cada momento do belo possível, seja  quando cada chave chega à porta correta ou quando a girafa desaparece porque é assim que o mágico deseja. Eis um átimo de magia. Eis aí uma expressão da grande beleza.  

Jep encontrou. E nós também encontramos em todo esse conjunto uma obra-prima porque há nela a grande beleza e a essência do intemporal.

(*) Palestra realizada na Casa do Saber em São Paulo, em março de 2014, com o artista plástico Bartolomeo Gelpi e o musicólogo e jornalista Zuza Homem de Mello.

PS 1: Resenha de Veríssimo a respeito do filme A Grande Beleza.  http://oglobo.globo.com/opiniao/a-beleza-maior-11375771


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