sexta-feira, 4 de julho de 2014

BAGDAD CAFÉ: DA ORDEM DO AMOR

Há muito tempo, o filme Bagdad Café fez sucesso e apresentava uma especial trilha sonora de Bob Telson (Calling you) premiada em 1988. Volto a ele para buscar sinais daquilo a que chamamos amor, ou melhor, um tipo específico de amor. A personagem chega a um café-motel-posto de combustível em um deserto na Califórnia e aos poucos vai se acomodando. Transformam-se o contexto e todos. Instala-se outra qualidade nos relacionamentos. Isso é da ordem do amor. Da harmonia no mundo. Por que e como isso acontece?

UMA HISTÓRIA SIMPLES

Out of Rosenheim (Bagdad Café) é uma produção alemã de 1987, dirigido por Percy Adlon. Um casal alemão a caminho de las Vegas, briga no meio do deserto de Mojave na Califórnia. A  mulher abandona o marido e segue sozinha, carregando sua mala, a pé até o Bagdad Café, onde transcorre a história. O contato dessa personagem feminina com as pessoas que moram nessa pequena comunidade promove transformações em todos.

A caminhada inicial em câmera lenta é arrastada e sob um sol de deserto e roupas pouco adequadas para o clima. O sapato é social, os pés afundam nas areias e a mala pesa. O alívio não parece estar perto de ser alcançado. É o deserto que a acolhe, enquanto o vento que sopra levantando poeira, e a secura e a falta de sombra escaldam o corpo e a alma.  

Ao chegar ao posto de gasolina, ela não tem muito consolo. A responsável pelo estabelecimento estranha a forasteira. O quarto é simples e o conforto mínimo.Como se estas novidades desagradáveis não bastassem, há outra: ela trouxe por engano a mala do marido. 

A dificuldade com a língua inglesa não facilita a convivência. Com poucos clientes, há ócio, individualismo e consequente desconexão entre os habitantes da comunidade. Na verdade, solidão.

O garçom é paciente, observa quieto e passa o tempo que pode na rede. O filho se exercita no piano quando a mãe permite. A presença de nova cliente, apresentada pelo sobrenome alemão impronunciável, impede o estudante de se exercitar. O marido preguiçoso parece não agradar em nada.

A dona do posto-café, Brenda, apresenta um humor irascível, uma imagem pouco simpática com tudo e todos. A única que parece ter o dom de se aproximar de Brenda sem perigo é a filha mimada que aparece de vez em quando para lhe pedir dinheiro e de novo, ir-se a outras paragens.  Há dois hóspedes, um senhor mais velho e uma jovem que faz tatuagens nos motoristas de caminhão que chegam para abastecer.Pouco depois, soma-se a este grupo um jovem mochileiro que pede para acampar. 

Nesse conjunto pequeno e heterogêneo ocorre, então, a partir da chegada de Jasmin uma crescente sintonia. Inventa-se um show. Bagdad Café, torna-se uma referência para os motoristas dessa estrada, um divertido ponto de encontro e acolhimento para todos.

 Um dia, Jasmin tem que ir embora por questões de documentação por ser estrangeira. Sua partida é sentida por todos. Um tempo depois, seu retorno faz que tudo se harmonize novamente. Essa história não tem nada de original quando é lida dessa forma. Mas, esconde outras leituras.



UM POUCO ALÉM DE DETALHES

Recontemos a história. O horizonte desértico, o vento que sopra levantando poeira, o sol a pino, a falta de verde e de sombra. É  a partir da rudeza desse contexto que a personagem chega ao café-motel onde a estória se desenrola. Tendo abandonado o marido, depois de uma cena de agressividade, lá inicia sua nova vida com recursos mínimos para a sobrevivência: dinheiro, a roupa do corpo e poucos recursos linguísticos de comunicação. 

Apesar dessa escassez, ela vai descobrindo tudo de que necessita para estar em relação com o ambiente, que apresenta rupturas e desconexão entre os que dela participam. 

Seu compromisso é tornar sua nova vida viável. Preocupada com questões de ordem, tem desejo de tornar seu mundo mais eficaz (ocupa o espaço de seu quarto, ajuda o garçom, limpa o escritório). 

Joga boomerang com os jovens, entrega-se e desnuda-se à pintura de Rudi Coxx. Transita entre os parceiros, exercendo uma atração espontânea e possibilitando a criação de uma nova ordem de funcionamento mais perfeito onde havia caos e separação. 

Sua comunicação faz-se pelo olhar (com o garçom), pelos risos (com a adolescente e nova amiga), pela escuta musical (com o pianista), pela sensibilidade estética (com Rudi Coxx). Há comunicação muda. Há sutileza nesses encontros.      

De uma forma feminina e delicada, ela se propõe aceitar a realidade, sem revolta ou questionamento. Vai lidando com os dados acessíveis. Sábia aceitação. E as pessoas à sua volta vão encontrando novas expressões de si mesmas e, aos poucos, formando um novo desenho do conjunto inicialmente desconexo.

Ao longo desse processo, ocorrem encontros improváveis: pela estética e pela afinidade de consciência (com Rudi Coxx), pela maternidade e pelo feminino (com Brenda), pela herança musical (com o pianista), pela alegria (com os jovens).

Talvez possamos chamar de amor a esses relacionamentos. Um tipo diferente de amor que surge quando as diferenças já não se fazem presentes e não há críticas. A aceitação do outro da maneira como ele é, despertou o melhor em cada um. Jasmim desmancha as barreiras com seu poder coersivo que vem de dentro de si mesma. 

E ela também passa por transformação. Ao final, veste claro, solta o cabelo e senta-se no chão para conversar com Brenda, igualadas. Bem antes, ao se conhecerem, passavam seus lenços pelo rosto, após terem se separado de seus maridos. Lágrimas ou suor? 

O título do filme em inglês diz Out of Roseheim. Jasmim tinha que sair de Roseheim para expressar o potencial que surgiu em Bagdad Café? Na verdade, sobram perguntas sem respostas. O que significa um ciciar de cobra? Brenda nunca saberá como uma cafeteira pôde chegar a seu estabelecimento com o nome da estrangeira que veio se hospedar com ela. Os mistérios pairam em meio ao nada, ao deserto.   

Mas, deve haver um motivo para tudo, assim como há uma explicação para a duplicação do sol no céu e para o boomerang nem sempre voltar a seu destino.    

A confissão da tatuadora a todos de que vai embora por haver harmonia demais no lugar é apenas mais uma cena meio absurda. Às vezes realista, muitas vezes surrealista, o diretor do filme nos cutuca e desafia o tempo todo.    

Um final feliz não nos tira a inquietação. A trilha sonora e os efeitos da fotografia são apenas dois aspectos, entre muitos outros que nos oferecem imagens que permanecem e nos fazem pensar. Uma flor ou fruto na mão de Jasmin,a auréola em sua cabeça na pintura de Rudi Coxx, suas pernas a correr pelo boomerang, leves.  E a nossa imaginação completando o que pode ser percebido por trás de tudo isso, uma harmonia imensa dando sentido a tudo e para todos.      

O diretor nos diz “Sim, no meio do deserto, com mínimos recursos, é possível construir harmonia”.  Isso é da ordem do mundo, é da ordem do amor.


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