quarta-feira, 29 de outubro de 2014

A MAGIA, SEGUNDO WOODY ALLEN

A crítica disse que o filme era fraco dentre os outros do seu diretor. Mas era Woody Allen. Você sabia que aos quinze anos, ele já tinha começado a escrever para colunas de jornais e programas de rádio? Sua obra é extensa e variada. Sem culpa, me dei o tempo para ver qual é a magia que vem do luar, segundo ele. Descobri que nesse filme há mais de um tipo de magia. O próprio cinema é magia. Saiba mais lendo o texto a seguir.


O CONFLITO NARRATIVO

You do something to me 
Something that simply mystifies me //
You have the pow'r to hypnotize me 
Let me live 'neath your spell
Cole Porter

Stanley (Colin Firth), que interpreta o famoso ilusionista chinês Wei Ling Soo, é mestre em identificar charlatões. Ele é convidado por Howard, amigo de longa data, a desmascarar uma jovem com poderes mediúnicos que encantou uma família rica e também o jovem herdeiro Brice que está apaixonado por ela. 

Ele topa a parada e conhece Sophie (Emma Stone) que tem beleza ingênua, inteligência e sagacidade  a ponto de se sustentar calmamente perante sua presença desafiadora. 

Enquanto o noivo caricato canta canções em seu ukelele, Sophie desenvolve as sessões mediúnicas agradando a senhora matriarca da família. E Stanley fica intrigado com os poderes que ela demonstra.

O lindo cenário do sul da França e a beleza da fotografia não escondem a discussão filosófica que se desenrola à la Woody Allen. Tiradas imprevisíveis, provocações, ironias leves e cômicas. As perguntas passam por este tema: existe mais do que o mundo real em que vivemos? 

As duas personagens centrais servem de apoio para o debate do tema. 

Ele é crítico, perfeccionista e sarcástico, não se preocupando em ser antipático, aceitando-se como arrogante. Confessa o bom senso e a lógica como prioridade. De acordo com o diagnóstico do psicanalista-personagem, Stanley é homem depressivo e infeliz. 

Por sua vez, Sophie nasceu em cidade pequena americana. Descreve-se de forma objetiva e simples: teve uma infância difícil com a mãe e desde cedo aprendeu a sobreviver. O que ocorre com um pragmatismo eficiente. 

Esses são os dados básicos a partir dos quais a história se delineia.  

MAGIA AO LUAR

A infelicidade humana é inexorável para o cético e ranzinza Stanley. Porém no contato com Sophie, acontecem mudanças. Aos poucos, há aberturas para novas atitudes. Depois da surpresa dos primeiros momentos com Sophie e da noite sem dormir, em crise e ao som de Beethoven, ele se permite viver alegria. Clarões de otimismo começam a habitar seu mundo e o vemos com um sorriso nos lábios. Observamos momentos de suspensão em seu ceticismo.

Nesse namoro com o otimismo ele é até visitado pelo poder da fé quando a tia querida passa por um acidente grave, submetendo-se a intervenção médica. Como não ser crédulo em um momento de muita dor e iminente possibilidade de perda? Stanley inicia então um diálogo com Deus (quase uma oração em voz alta) que dura o tempo de umas poucas frases. No meio de uma delas, ele para. Irritado pelo deslize, recomposto após essa experiência de delírio, ele volta a seu estado natural de racionalista convicto. Para quê buscar a esperança onde não há?  

A narrativa entra e sai do ceticismo. Esse balanço cria um movimento de suspense. Stanley continuará cético? Sua resistência sucumbirá à presença de Sophie? 

Mas a cena mais importante do filme não é esse diálogo de Stanley com Deus. Depois de tomarem chuva, ambos se protegem em um observatório astronômico. Quando a chuva passa, ele se lembra de abrir a cúpula para olhar o céu. Para ele, olhar o céu é amedrontador. Para ela, é romântico. Por que motivo o tamanho enorme do mundo o assustaria? 

Eles olham pela abertura do observatório onde se vê a lua, fina e delicada. Não é necessário mais do que essa pequena fresta para adivinhar todo o imenso céu e sentir a magia do luar. 

Depois do contato com a médium, mesmo se Stanley não chega a acreditar em outro modo de pensar a existência humana, se continua resistente em seu ceticismo, sua vida nunca mais será como antes. A inteligência racional não o defende do amor. Sophie tem o charme da beleza. Será isso? Como explicar o feitiço do amor?


REALIDADE, MÁGICA E MISTÉRIO

A magia está presente no título do filme e perpassa toda a narrativa. A palavra inglesa magic ganha em português pelo menos duas traduções: magia e mágica. Além dessas palavras temos outras ligadas a essas: encantamento, fascinação, atração, mistério. Cria-se um campo semântico especial ligado a esses significados. A narrativa se divide: ceticismo e realidade? Ou magia e mistério de Deus? A racionalidade é suficiente para explicar a vida?

Parece-nos que tais questões fazem parte do repertório de Woody Allen em muitos de seus filmes. E há também a magia do cinema que ele sabe utilizar para contar histórias. O ofício do cineasta é ser ilusionista nos levando a um mundo mágico de luzes e sombras em que tudo pode acontecer. Ele é um ótimo ilusionista pervertendo a realidade, transbordando limites dela, surpreendendo-nos com verossimilhança em todas as situações. Como não acreditar em suas histórias?

E como o próprio Stanley, talvez Woody Allen continue o cético e pessimista de sempre, mas seu alter ego nesse filme - a querida tia de Stanley- diz para o sobrinho: O mundo pode ter ou não ter lógica, mas não é ausente de mistério. Essa magia não é a arte do mágico chinês de Stanley ou a dos truques de Sophie. A tia talvez esteja falando de níveis imponderáveis da vida entre os quais se inclui o amor.

Permanecemos com dúvidas e com incoerências difíceis de explicar, mas com uma sensação de que algo fechou bem. As amizades não se desfizeram apesar das traições, as pessoas não sofreram apesar das mudanças de trajeto e abandonos. O diretor salva a história. Ele só não consegue apagar o retrato da natureza humana com suas misérias e precariedades.

Esta comédia chega a um happy end quase improvável. Se houve frustração em algum telespectador, não foi sem um aviso lá no início do filme, com o jazz impecável de Cole Porter, a respeito de um feitiço que aprisiona. Não teria sido um convite para entrarmos na sedução do cinema?  

Talvez tenha sido uma escorregadela do diretor falando do amor que faz da vida um local de magia. Mas, sem dúvida, trata-se de um imperdível, solar e lindo filme romântico. 


PS 1: Das resenhas que eu li, indico a de Isadora Sinay:http://www.posfacio.com.br/2014/08/28/critica-magia-ao-luar/



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